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Flávia Gasi

Estigma sobre os chineses: seria o coronavírus a nova "Praga do Egito"?

Flávia Gasi

05/02/2020 04h00

Desde o momento em que o coronavírus foi classificado como uma emergência de saúde global pela Organização Mundial de Saúde (OMS), muitas ações se deram em consequência, como esperado. Inclusive, frente a uma epidemia, há diversas atitudes de contenção que realmente devem ser tomadas. Em momento nenhum escrevo esta coluna para suavizar a importância do olhar para saúde. Contudo, epidemias são, historicamente, momentos em que nossos preconceitos são vazados, e que nosso sistema de crenças se mostra totalmente aparente.

Figura 1 – Cuidado, esta imagem ilustra fake news

De acordo com algumas reportagens, já se espalha o pânico e atitudes racistas são vistas contra os povos chineses (e algumas contra os povos asiáticos em um geral). A reportagem da Folha de S.Paulo evidencia que alguns sino-brasileiros sofrem preconceito apenas por andar na rua: "Ela falou que eu ficava espalhando doenças pra todos e me chamou de nojenta (…) e ela ficou me acompanhando pela janela do metrô e me mostrando o dedo do meio", conta um relato da reportagem da Folha. "esse povo contamina tudo", diz outra pessoa.

Veja também:

A reportagem do Intercept comenta sobre o racismo visto em desinformação e em fake news, como a imagem de sopa de morcegos – que dizia que a origem do vírus foi porque chineses comem morcegos. Esta notícia é falsa. O artigo comenta que "grupos bolsonaristas no WhatsApp foram inundados de boatos, em forma de 'breaking news', que diziam que os chineses estavam morrendo caídos nas ruas, que pais abandonaram filhos no aeroporto ao saberem da contaminação e que 23 milhões de pessoas estavam em quarentena e 112 mil haviam morrido". Apesar de todo o alarme, tudo isso é falso.

Uma das coisas que ambas as matérias, e muitos comentários por aí, têm em comum é tratar o povo asiático como um tipo de enxame, que vêm em bandos, roubam o trabalho dos outros, e espalham doenças. Fiquei muito pensativa sobre essa imagem, porque ela me lembra dois momentos diferentes, além de evocar um tipo de mensagem. Vamos começar pela imagem.

O imaginário da larva

Figura 2 – O formigar de uma imagem pode rapidamente se transformar no fervilhar de larvas

Esse tipo de enxame, para mim, tem bastante a ver com a questão do formigamento, do fervilhar. Como se um povo pudesse agir como um enxame, e formigasse pelas ruas, como pragas. Bachelard, no livro "A Terra e os Devaneios do Repouso", fala que "em numerosas obras, ligou-se diretamente o formigamento da formiga ao fervilhar da larva. É este movimento que, imediatamente, revela a animalidade à imaginação e dá uma aura pejorativa à multiplicidade que se agita. É a este esquema pejorativo que está ligado o substantivo do verbo fervilhar, a larva". (BACHELARD, 1990:43). Durand, em seu "Estruturas Antropológicas do Imaginário", concorda com esta linha de raciocínio: multiplicidade pode se tornar uma imagem de agitação e de caos.

A questão então é: de onde vem isso? Por que tendemos a reduzir toda a complexidade de um povo a uma questão fervilhante? Note que não há nenhum motivo racional para temer asiáticos no Brasil, não há nenhum caso comprovado de coronavírus aqui – e se houvesse, não temos como saber se os portadores são apenas asiáticos. Em um mundo globalizado, não podemos imaginar que apenas uma raça seja responsável por espalhar um vírus.

Durand comenta que: "Para a consciência comum, todo inseto e todo verme é larva. (…) Tema que Hugo vai buscar ao Apocalipse onde gafanhotos e rãs – essas velhas pragas do Egito! – se conjugam para simbolizar o mal (…). Esta repugnância primitiva diante da agitação racionaliza-se na variante do esquema da animação que o arquétipo do caos constitui. O inferno é sempre imaginado pela iconografia como um lugar caótico e agitado, como o mostram ou o afresco da Sistina, ou as representações infernais de Bosch, ou a Dulle Griet de Breughel." (DURAND, 2002:37-38). Ou seja, para o autor, essa repugnância que sentimos do diferente, do que se movimenta de maneira diferente daquilo a que estamos acostumados, acaba por revelar nosso sistema de crenças, em especial a crença em um inferno.

A imagem de inferno que temos é, realmente, um fervilhar de castigos, como revela a imagem de Bosch, citado por Durand:

Figura 3 – "Mulher-Esqueleto", de Bosch

As pragas do Egito

E esse tipo de poder divino de destruir uma população ou deuses menos dignos pode ser visto na Bíblia. Inclusive, é um tipo de narrativa que é repetida pelo livro sagrado, e talvez mais lembrado pelas pragas do Egito – também citadas no texto de Durand acima. As pragas não foram apenas um castigo de Deus para que o faraó deixasse seu povo partir, foram também uma amostragem de superioridade dos Deuses Egípcios.

Para quem não se lembra, aqui vão as pragas e os Deuses Egípcios associados a elas:

  1. As águas do Rio Nilo tingem-se de sangue, os rios foram contaminados, todos os peixes morreram. Não apenas um enfrentamento ao deus-Nilo, Hápi, como aos peixes sagrados na cultura egípcia.
  2. Rãs cobrem a terra. A deusa Heqt simbolizava a rã e era símbolo de fertilidade e de ressurreição.
  3. Piolhos atormentam homens e animais. Os sacerdotes do deus Tot da magia tentaram extinguir a praga, e não conseguiram.
  4. Moscas escurecem o ar e atacam homens e animais. Os sacerdotes de Tot também ficam impotentes.

Figura 4 – "A Sétima Praga", de John Martin

  1. A morte dos animais. Muitos deuses egípcios estavam ligados a animais de pasto: Seráfis, ao gado; a deusa-vaca, Hator; a deusa do céu, Nut, também simbolizada como uma vaca.
  2. Pústulas cobrem homens e animais, onde vemos o mesmo tipo de subjugação.
  3. Chuva de granizo destrói plantações. Tirou controle da natureza dos deuses egípcios que as representavam, como o deus da água Íris.
  4. Nuvem de gafanhotos ataca plantações e os deuses egípcios da colheita.
  5. Escuridão encobre o Sol por três dias, o que seria um ataque a um deus poderoso, o deus-sol Rá.
  6. Os primogênitos de homens e animais morrem. O que, basicamente, subjuga todos os deuses egípcios.

Ou seja, faz algum tempo que associamos o poder divino à capacidade de purificar os menos dignos. O problema é como definir o que é o normal, o digno, e o menos digno. Esse tipo de discurso, contudo, já foi usado contra a população LGBTI+ numa época em que informações sobre a Aids eram menos divulgadas, por exemplo.

A "peste gay"

Figura 5 – Era comum chamar Aids de "peste gay", mesmo em jornais reconhecidos

Por que a comunidade LGBTI+ era vista como a que apresentava um comportamento anormal? Falo bastante disso neste texto: Homo, bi, intersexo e até drag queen: a cultura LGBTI+ na mitologia. Contudo, a discussão sobre o que é um comportamento normal foi questionada muitas vezes pelo filósofo Michael Foucault. Como ponto de partida, podemos utilizar os livros "Vigiar e Punir" e "História da Sexualidade". Em ambos, o autor explica que os grupos detentores de poder criam e determinam o que é normal. Essas normas podem ser relações econômicas, sociais, culturais. Ou seja, o normal é uma convenção de poder.

Quando o vírus do HIV começou a se espalhar, apesar de outros grupos estarem entre os tipos de risco, foi a comunidade LGBTI+ que deu o nome à doença: peste gay. Isso porque ser gay já era considerado um comportamento anormal para os que estavam no poder, então, uma epidemia só pode ser um tipo de ato divino, lançando mais pragas em deuses e população não merecedora. Ou seja, não foi a Aids que criou um estigma na comunidade LGBTI+; este estigma sempre existiu, e a Aids foi usada para legitimar o estigma. Aggleton & Parker comentam sobre isso em seus estudos sobre a doença: "Em última análise, portanto, estamos falando de desigualdade social. Para confrontar e entender corretamente as questões da estigmatização e da discriminação, seja em relação ao HIV e à AIDS ou a qualquer outra questão, é necessário, portanto, que pensemos de maneira mais ampla sobre como alguns indivíduos e grupos vieram a se tornar socialmente excluídos, e sobre as forças que criam e reforçam a exclusão em diferentes ambientes" (Aggleton & Parker, 2001:11-12).

Este fervilhar do Coronavírus me traz de volta as imagens do fervilhar das larvas, das pragas do Egito, da peste gay. O problema é que nenhuma destas narrativas apenas expôs um problema, ou uma doença. Todas remetem à questão do poder, do medo que temos do que difere de nós, ou do que difere do comportamento normal. Da cultura que é normal. Do rosto que é normal. Não é o Coronavírus que traz estigma à pessoas asiáticas, é nosso tratamento a elas que revela o estigma e o racismo que sempre tivemos. O Coronavírus é só uma maneira débil e bizarra que usamos para tentar legitimar nossos preconceitos. A multiplicidade de outrem não precisa ser feita de larvas, ela pode apenas existir.

PARA LER MAIS

AGGLETON, P., & PARKER, R. (2001). Estigma, Discriminação e AIDS (Coleção Cidadania e Direitos n° 1). Rio de Janeiro: ABIA.

BACHELARD, Gaston. (1990a.) A terra e os devaneios do repouso: ensaio sobre as imagens da intimidade. São Paulo: Martins Fontes. [1948].

DURAND, Gilbert. (2002) Estruturas antropológicas do imaginário: introdução a arquetipologia geral. São Paulo: Martin Fontes, 2002

FOUCAULT, M. (1985). História da Sexualidade: à vontade de saber. Rio de Janeiro, Ed. Graal.

______; (1987) Vigiar e Punir: história das violências nas prisões. Petrópolis: Vozes.

GOFFMAN, I. (1988). Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Petrópolis, Ed. Guanabara.

Sobre o Autor

Flávia Gasi é doutora e mestre pela PUC-SP no programa de Comunicação e Semiótica. Sua dissertação de mestrado foi ampliada para se tornar o livro Videogames e Mitologia. Atualmente é CEO da Forja, sócia do blog Garotas Geeks, e criadora da escola Verve. Com mais de quinze anos de experiência em jornalismo e comunicação no mercado gamer e de cultura pop, fundou um grupo de estudos chamado JOI – Jogos e Imaginário, e dá aulas de narrativa para games.