Flávia Gasi http://flaviagasi.blogosfera.uol.com.br Só mais um site uol blogosfera Mon, 06 Jul 2020 17:03:42 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Expresso do Amanhã, TNT-Netflix: o filme-videogame que incomodou Weinstein http://flaviagasi.blogosfera.uol.com.br/2020/06/13/expresso-do-amanha-tnt-netflix-o-filme-videogame-que-incomodou-weinstein/ http://flaviagasi.blogosfera.uol.com.br/2020/06/13/expresso-do-amanha-tnt-netflix-o-filme-videogame-que-incomodou-weinstein/#respond Sat, 13 Jun 2020 07:00:28 +0000 http://flaviagasi.blogosfera.uol.com.br/?p=234 Talvez você, como eu, esteja assistindo à “Expresso do Amanhã, nova séria da TNT, também em exibição na Netflix. A plataforma optou por liberar um episódio por semana, o que significa que escrevo essa coluna em meio a um lançamento. Ainda tenho minhas dúvidas se gosto ou não desta nova adaptação da HQ, mas percebo algo interessante.

Talvez você não conheça a primeira adaptação do quadrinho “Le Transperceneige” de Jacques Lob, Benjamin Legrand e Jean-Marc Rochette: o filme “Expresso do Amanhã”, baseado na HQ, foi lançado de forma modesta em 2014. Dirigida por Bong Joon-Ho, o mesmo que venceu o Oscar 2020 por “Parasita”, a obra não foi tão bem vista pela produtora e distribuidora.

Por que tanta gente não conhece o filme?

Hollywood tende a não aceitar muito bem películas que não cabem dentro de caixas, ou que sejam desconfortáveis. “Expresso do Amanhã” é brilhantemente bizarro, cheio de coração e violência gráfica, disputa de classes. É esteticamente grotesco e maravilhoso. Assim, a Weinstein Company (sim, do criminoso e predador sexual Harvey Weinstein) adquiriu os direitos do filme, mas se incomodou com os itens supracitados e com algumas falas em coreano. Reduziu a campanha publicitária do filme e as exibições nas salas de cinema.

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A empresa decidiu que “Expresso do Amanhã” seria lançado por streaming e vídeo on demand duas semanas depois da estreia. Como a maior parte das franquias de cinema só aceita filmes que ficarão ao menos 90 dias nas suas telas, o lançamento foi afundado.

Ou seja, se você não tinha escutado falar do filme até recentemente, é porque sua estratégia de marketing foi, realmente, toda torta.

Um filme-videogame

O que é uma tristeza, pois, como entusiasta e pesquisadora de videogames, “Expresso do Amanhã” traz particularidades que o fazem parecer um jogo. Mas, primeiro, que tal tratarmos da premissa? O filme se passa em 2031, cerca de 18 anos após um desastre climático causado pelo homem, que mergulhou a Terra em uma nova era glacial. Assim, a sobrevivência só é possível dentro de um trem chamado “Snowpiercer” (ou Expresso do Amanhã), que circunda a terra congelada, nunca parando. O trem revela a estratificação social: há aqueles que vivem na pobreza extrema – os chamados “tailies”, ou galera do fundão – e os passageiros mais privilegiados da terceira, segunda e primeira classes, que mostram graus que começam na pobreza e terminam na opulência total.

No filme, seguimos Curtis (Chris Evans), mas não sabemos muito sobre ele, nada sobre seu passado ou família. Ele e seus amigos querem sair do fundão e chegar à frente do trem. Essa é a missão principal. Esse é o foco. O filme é como um jogo de progressão lateral (como “Mario Bros” ou “Sonic”), no qual o protagonista pula de fase e fase, até chegar ao chefão. Desse modo, cada vagão pode ser tratado como uma fase específica – todos são bem diferentes, cada qual tem sua mecânica (ou seja, uma maneira de funcionar, de vencer, de chegar até o outro lado).

E aqui é que está a grande genialidade do filme: ele pode conter humor sombrio em um minuto (ou vagão), violência insana e homenagens ao filme “Old Boy” em outro, variar cores, estilos, funcionamentos. A progressão no filme altera como vivemos cada fase, sem nunca perder o foco da missão principal. E, sim, tem bastante ação de forma gráfica e de forma estética: todos os vagões foram criados para afetar quem lá está de modos diferentes. Além disso, há um modo de sobrevivência em jogos, no qual você deve resistir a hordas de oponentes. Esse filme me lembra exatamente disso.

Umas das coisas que mais curto é o surrealismo de “Expresso do Amanhã”, e a atenção que Bong Joon-Ho deu aos detalhes. Falemos do segundo item primeiro: a película foi filmada na República Tcheca, no estúdio Barrandov, um local que permitia a construção do maior cenário possível. O designer de produção Ondrej Nekvasil ergueu um trem que teria 650 metros de comprimento se estivesse em uma linha reta. Os sets tinham todas múltiplas molas pneumáticas, e tudo parece vivo. Ao mesmo tempo, tudo parece impossível: vagões de orgia misturados a cenários escolares e um vagão que carregava apenas assassinos mascarados. Em uma cena, um homem tem o braço congelado e arrancado; em outra, Mason (Tilda Swinton) é a perfeita imagem do humor e do terror.

Ao final, temos a figura central: Wilford, o criador do trem e seu próprio mágico de Oz, que tem seu segredo. Acho melhor não contar, você deveria assistir.

Diferenças da série

A série “Expresso do Amanhã” se passa sete anos depois de o trem ser colocado em movimento. Ou seja, os passageiros do fundão se lembram bem de suas vidas antes dele. Assim, temos mais passado para os personagens. O foco no conflito de classe ainda está presente, e olhado de mais maneiras, sabemos mais sobre o ecossistema do trem e de quem o habita. Contudo, com menos brilhantismo que Ho trouxe para o filme.

Por outro lado, acho interessante que focamos em uma luta aparentemente eterna, real. Também me parece correto alterar o tom rápido da história. Na série, o protagonista é Layton (Daveed Diggs), um ex-detetive de homicídios – aparentemente, o único no trem inteiro (o que é um pouco forçado). Em seu começo, a série parece ser muito mais baseada em personagens do que em tramas tradicionais e em mistério. A premissa é que aconteceu um assassinato no trem, então a presença de Layton é requisitada.

Há uma reviravolta muito maior em torno do Sr. Wilford, o criador do trem, na série, que se comunica com seus passageiros através da chefe de hospitalidade Melanie Cavill (Jennifer Connelly). E esse segredo é o que me deixa mais animada para continuar, já que a ação, e as cores de Ho não são encontradas ali.

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Por que ‘Lost’ é importante, 10 anos depois do final da série http://flaviagasi.blogosfera.uol.com.br/2020/06/03/por-que-lost-e-importante-10-anos-depois-do-final-da-serie/ http://flaviagasi.blogosfera.uol.com.br/2020/06/03/por-que-lost-e-importante-10-anos-depois-do-final-da-serie/#respond Wed, 03 Jun 2020 07:00:00 +0000 http://flaviagasi.blogosfera.uol.com.br/?p=222 Sim, eu sei que muita gente não viu “Lost”, ou não quer falar sobre o assunto por causa do final, que causou polêmica. Como parte do público assíduo – participei de fóruns, li todos os livros que apareciam na série, joguei os games (que eram ruins), fiz os ARGs e algumas lives defendendo a série e o final – eu queria já tirar o tópico de cena. Entenda por que eu defendo o final da série aqui:

Transmídia

O final polêmico só rendeu tantas discussões porque “Lost” foi, essencialmente, a primeira série a causar esse tipo de movimento gigantesco na internet. Claro, na época passamos por outros seriados que foram muito amados como “Buffy, a Caça Vampiros” e “Battlestar Galactica” (outro entre meus preferidos). Porém, foi Lost quem acertou o público mais mainstream. Pense que, quando a série começou, nem havia Twitter – que só entraria no ar dois anos depois – e quando ela acabou os fãs que não gostaram do final foram tão vocais que fizeram um dos criadores do seriado fechar a sua conta na mídia social.

O mundo estava mudando quando Lost começou, especialmente pela maneira como as pessoas passavam a tratar de relações e interações virtuais. E a série foi uma contribuidora para o crescente movimento de fóruns. Ela tinha seu próprio wiki, o Lostpedia, que existe até hoje; podcasts dedicados a entender seus mistérios; diversos fóruns próprios e canais de IRC, em que fãs debatiam teorias em tempo real, enquanto o episódio passava. Isto pode parecer comum hoje em dia, mas foi com Lost que esse tipo de comportamento se normatizou.

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Outro fenômeno novo era o de streaming: a rede ABC passou a disponibilizar os episódios da série um dia depois de sua exibição na TV. A qualidade da alta definição também foi importante para mostrar os locais e os detalhes da ilha – e sempre havia um easter egg (segredo escondido) a ser encontrado e dissecado, em referências a outros livros, em games e pequenos episódios criados para serem emparelhados com a série etc. Para você ter noção, o Lostpedia mostrou o que seriado fez referências a cerca de 500 livros ao longo dos seus seis anos. Assim, a série ajudou a redefinir um cenário em que franquias de TV podiam se expandir para além das telas, não apenas com produtos de merchandising, mas explicando seus detalhes em mídias diferentes.

Para o filósofo Henry Jenkins, essá é a própria definição de narrativa transmidiática. “A narrativa transmidiática se desenrola em múltiplas plataformas, com cada texto sendo distinto e trazendo uma contribuição valiosa para o todo” (JENKINS, 2006:95). Lost ainda é citado como um dos melhores exemplos a fazê-lo.

Foco nos personagens

“Lost” narra a história de um avião em rota internacional, que caiu em uma ilha misteriosa. Por causa do enredo, o seriado pôde falar de histórias raramente contadas na TV norte-americana padrão: um casal de coreanos que age a partir de sua cultura, ou um iraquiano que lutou do lado do inimigo dos Estados Unidos. As séries da época começavam a se preocupar com representatividade (como as obras supracitadas), e mesmo antes disto, com obras como “Star Trek”. Contudo, o tipo de diversidade de personagens vista em “Lost”era algo bem raro para um programa que não era focado em um nicho da sociedade, ou de minorias sociais.

“Lost” nunca bebeu de apenas uma fonte em termos de gênero: ele passeou pela ficção científica, pela fantasia, pela ação, aventura, romance. Seu foco era nos personagens, e não em uma estrutura literária. Mesmo o herói da história, Jack, não é um protagonista comum e sem falhas – e muita gente debate se ele é o real herói da história. E, mesmo assim, nem todos os capítulos e conflitos eram sobre ele, pelo contrário, “Lost” sempre compartilhou os holofotes. Os antagonistas sempre mudavam, quando conhecíamos mais profundamente as histórias por trás deles. Contudo, a ilha sempre deixou claro que havia um vilão, seja na fumaça ou o jogo de gamão, símbolo recorrente entre batalha de duas forças opostas.

Foi a escrita focada em personagens que lhe rendeu indicações e até um Emmy, algo que não era comum para “shows de ficção científica”. O que abriu espaço para diversas séries mais fantasiosas em premiações, como “Game of Thrones”, ou até “The Good Place”.

Organizando o tempo

Como uma série que se passa em diversos momentos do tempo, e tenta mostrar como tudo se conecta, eu entendo que as pessoas tenham ficado confusas com relação à temporalidade, e onde, como e quando seus personagens estavam na última temporada. Porém, um dos maiores trunfos de “Lost” é exatamente organizar sua narrativa em tempos diversos, que podem parecer esquisitos.

Esses formatos foram aos poucos, com cada tipo de uso de tempo, espalhado em temporadas diferentes. Os flashbacks estavam no DNA da série, usados desde o piloto. Com eles, os escritores podiam mostrar problemas e o cotidiano dos passageiros do voo 815. Geralmente, estes problemas se relacionavam com algo que eles estavam passando na ilha, ou revelavam um segredo. Por exemplo, Locke aparece na ilha como um tipo de líder caçador, e em um flashback descobrimos que ele estava em uma cadeira de rodas, antes do acidente.

No último episódio da terceira temporada, “Lost” passou a usar FlashForward, ou seja, mostrava a vida de alguns dos personagens que tinham conseguido escapar da ilha. Mas, claro, sem nunca contar a história completa até o momento final. O último recurso, FlashSideaways, ocorreu na sexta temporada, e se passa em um tipo de realidade paralela, como se os personagens tivessem em um local de não existência.

Estes são os maiores fatores que fizeram de “Lost”ser citado como influência para outras histórias contemporâneas.

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No marco da abolição da escravatura, conheça HQs nacionais sobre negritude http://flaviagasi.blogosfera.uol.com.br/2020/05/19/no-marco-da-abolicao-da-escravatura-conheca-hqs-nacionais-sobre-negritude/ http://flaviagasi.blogosfera.uol.com.br/2020/05/19/no-marco-da-abolicao-da-escravatura-conheca-hqs-nacionais-sobre-negritude/#respond Tue, 19 May 2020 07:00:58 +0000 http://flaviagasi.blogosfera.uol.com.br/?p=206

A abolição da escravatura no Brasil tem como marco histórico o dia de 13 de maio de 1888, mas o processo de libertação não ocorreu apenas neste dia e deixa suas marcas até hoje. Sabe-se, por diversos documentos e livros (você pode encontrar alguns deles no final desta coluna), que a proibição do tráfico de escravos, por exemplo, que ocorreu em 1850, foi travada por medo de retaliação da Inglaterra. O país pressionava o Brasil para que a prática fosse extinguida.

Passaram 20 anos para que o movimento abolicionista ganhasse força real – e há muitos heróis negros no processo. A própria princesa Isabel não era necessariamente abolicionista, mas assinou o tratado por pressões políticas. O problema é que o fim da escravidão não marcou uma melhora na qualidade de vida dos ex-escravizados; pelo contrário, há diversas obras que mostram como negros libertos continuaram oprimidos pelos seus ex-senhores. Havia grupos de libertos que queriam migrar dos locais onde foram escravizados, mas eram presos por vadiagem e vagabundagem; ameaças físicas; sequestros de libertos; além de terem que aceitar condições de trabalho bem parecidas com aquelas que tinham durante o período de escravidão. Assim, libertos permaneciam em condições precárias, sem possibilidade real de estudo, de adquirir propriedade, e de ascender nas camadas societárias.

Ou seja, a abolição da escravatura é realmente um marco, mas dizer que os efeitos da escravidão acabaram, até mesmo nos dias de hoje, é ingênuo. Assim, para falarmos realmente sobre este marco, achei que você deveria conhecer histórias em quadrinhos que tratam da questão da negritude, e o que seus autores pensam a respeito de tudo isso.

Representatividade e história

É importante comentar por que a representatividade importa e, assim, por que as falas desses autores e suas são cruciais para a vivência brasileira. Especialmente no que diz respeito aos tropos ligados aos negros brasileiros, como lembra o multipremiado autor Marcelo D’Salete, vencedor do maior prêmio de quadrinhos internacional, o Eisner: “Representatividade é algo muito importante, especialmente se a gente pensa no Brasil nas décadas de 1970, 80 e 90, onde muitas vezes o negro aparecia apenas como serviçal, subalterno… Temos alguma diversidade hoje, mas ainda é aquém, se pensarmos que a maioria da população é de ascendência negra. E essa imagem ainda é uma imagem deturpada na mídia, é preciso avançar”.

Para Rafael Calça, roteirista vencedor no notório prêmio Jabuti pela HQ “Jeremias: Pele”, o convívio diário com esse tipo de imaginário da figura do(a) negro(a) nos revela as estruturas arraigadas do racismo: “O racismo não é nem nunca foi apenas focado em ofensas. Era a desumanização instaurada pela escravidão junto com sua justificativa: leis segregacionistas, livros, peças, charges e publicidade racistas… O ideal do negro como animalizado e digno de correntes, de favelas, de subempregos vem disso tudo. E o que é mostrado na cultura de massa molda a nossa percepção dentro da sociedade”.

Alex Mir, autor de muitos e ótimos quadrinhos sobre orixás e cultura africana, e vencedor do troféu HQ Mix, corrobora a tese: “As pessoas precisam saber que podem ser o que quiserem. E os exemplos são importantes. Quebrar a homogeneidade da sociedade é de suma importância para que nossas crianças pretas cresçam admirando heróis pretos, exemplos pretos. Por muito tempo, o negro viveu à margem da sociedade, e ter representatividade é mostrar que isso vai mudar”.

Além disso, a questão da abolição não é necessariamente tratada com complexidade nas nossas escolas. Ainda é preciso falar muito sobre o que ocorreu depois da Lei Áurea assinada. Por causa disso, Mir acredita que as HQs são essenciais como complementos de aprendizado: “As HQs têm o poder de atingir todos os públicos e, principalmente, a faixa etária infanto-juvenil”, explica. “Nada melhor que a linguagem dos quadrinhos para mostrar a igualdade entre as pessoas e tudo o que não pode voltar a acontecer, evitando os mesmos erros. Nosso futuro está nas escolas.

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A partir do momento em que temos o negro como protagonista de sua própria história, aprendemos a escutar o lado da história que não nos foi contada, que não está nos livros”, comenta Marília Marz, que transformou seu trabalho acadêmico na história em quadrinhos “Indivisível”. De fato, existe muito que não foi contado nos livros, e muitas histórias que vivem perdidas como grãos de areia: são inúmeras, multíplices e estão à vista, mas relativamente perdidas. A perda de conexão com o passado influencia diretamente, dizem este autores, na busca por possibilidades de futuro, pois nos rouba de compreender, de fato,  “as consequências socioeconômicas e políticas geradas, desde o período da escravidão até os dias de hoje, na vida de pessoas negras dentro e fora do Brasil e dos agentes responsáveis por elas”, afirma Marz.

Este passado não contado não acontece apenas nos livros de escolas, mas tem repercussões no cotidiano de mulheres e homens de cor, como coloca Jefferson Costa, vencedor do Jabuti por “Jeremias: Pele”, e autor do belíssimo “Roseira, Medalha, Engenho e Outras Histórias”: “Não sei de que região e povo africano descende meu avô. Nem com exatidão de que tribos indígenas minhas avós descendem. Apenas probabilidades. O que sei, com toda certeza, é que foram resistência. Que foram o lado não contado e cantado na história”.  Há muitas figuras esquecidas, sejam de contos familiares e pessoais, ou não, “personagens como Luís Gama, Zacimba Gaba do Espírito Santo, Tereza de Benguela, bem como do quilombo mais conhecido, de Palmares, personagens como Ganga Zumba, Ganga Zona, e diversos outros. Isso é essencial para que a gente compreenda de uma forma mais complexa a experiência negra e diaspórica no Brasil”, explica D’Salete. E perdê-las não é uma possibilidade que deveríamos nos contentar, pois isto transforma a integralidade de cultura em anulação, como continua Costa: “É uma história que desconsidera o lugar e herança cultural de povos originários e formadores dessa própria história. O que destrói qualquer ideia de pertencimento e integração de povos. Integração é anulação e absorção. Pertencimento é ilusão.”.

Contudo, ter representação nas histórias não deveria ser um fim, mas um começo. “Por mais que a representatividade seja muito importante – ter mulheres e homens negros em diferentes posições na mídia, em diferentes espaços da política e outros –, não podemos ser ingênuos em imaginar que apenas essa imagem de pessoas negras, indígenas e outros não negros em locais de poder, seja algo equitativo. Na verdade, não é”, coloca D’Salete. O autor não desmerece, em nenhum momento, a necessidade de termos histórias, mas reforça e alerta que elas são o ponto de partida para que possamos gerar comprometimento de fato “com uma mudança na sociedade, e com as bases extremamente racistas, machistas e discriminatórias desta sociedade”.

Essas HQs fazem uma parcela de resgate, e urgem que você possa entrar em contato com grãos perdidos. Seja para compreender a história de outrem, para reviver sua humanidade, ou, e mais importante, para servir como começo de uma mudança real. Assim, comece pelos quadrinhos abaixo.

Quadrinhos para ler

Série Orixás – Alex Mir

Desde 2011, Mir tem lançado livros compilados com histórias de Orixás, de histórias de criação, raízes dos deuses e de seus contos, guerras, entre outros. Eu recomendo que leia todos. O primeiro se chama Orixás – do Orum ao Ayê, seguido de Orixás – o dia do Silêncio, Orixás – Renascimento, e Orixás – Ekú.

O primeiro volume tem 80 páginas, e foi publicado pela editora: Marco Zero.

O que diz o autor: “Escolhi escrever essas HQs Primeiramente, para mostrar ao grande público o quão é bela a mitologia africana. Desmistificar uma cultura que é tão rica e faz parte das nossas raízes. E por causa da própria representatividade. Quando comecei, havia pouquíssimo material. Chegar às escolas foi uma vitória! Hoje já vemos diversas mídias falando da negritude. E isso é só o começo.

Roseira, Medalha, Engenho e Outras Histórias – Jefferson Costa

Calcado pelo realismo mágico e por lembranças, Jefferson narra histórias sobre o sertão nordestino e o movimento dos retirantes. Sensível, a HQ passeia por memórias e fala sobre as heranças da oralidade e da cultura. Com 224 páginas, foi lançada pela editora Pipoca & Nanquim.

O que diz o autor: “Buscar a conexão interrompida com essa herança ancestral passou a ser objetivo pessoal, e trazer à superfície em forma de arte sequencial, em forma de registro é resistir. Uma missão de formiguinha, de aprender, conhecer, não esquecer e passar a diante. Trazer provocações, reflexões e questionamentos a cerca desses assuntos escapando à formatação identitária de ilusão.”

Indivisível – Marília Marz

Marília apresenta sua pesquisa sobre o bairro da Liberdade em São Paulo, e revela as raízes africanas que ficaram soterradas pelo concreto. Por meio da cidade, Marz fala de sua própria identidade. Indivisível foi lançado de forma independente e tem 72 páginas.

O que diz a autora: “Em minhas HQs e ilustrações busco tratar da relação entre indivíduo, identidade e cidade.”

Angola Janga – Marcelo D’Salete

Angola Janga é uma HQ que retrata o período histórico de Zumbi dos Palmares e de Angola Janga, um refúgio africano na América do Sul, que resistiu por cerca de cem anos. Além de ser informativa, e dar rosto e voz a diversos heróis da época, é um relato grandioso, que deveria ser considerado patrimônio nacional. Também recomendo Cumbe e Encruzilhada.

O que diz o autor: “Faço quadrinhos devido a paixão que tenho por essa forma de expressão. Minha intenção com HQs desde sempre foi tentar falar um pouco sobre minha realidade, meu entorno. Isso não foi um projeto de antemão, arquitetado, mas foi uma narrativa que fui criando aos poucos. Minhas narrativas são um recorte dessa experiência negra e diaspórica no Brasil, a partir de personagens singulares e das minhas leituras da cidade de São Paulo no período contemporâneo ou do Brasil de séculos atrás.”

 

Jeremias: Pele – Rafael Calça e Jefferson Costa

Focada no personagem criado por Maurício de Sousa, o quadrinho narra as primeiras dores de Jeremias ao enfrentar o racismo quando criança. A história segue, sensível, sobre as descobertas do menino com relação à sua identidade, e a realidade da sociedade com temporânea. Vencedora do Jabuti de 2019, a HQ ganhará versão audiovisual, em formato seriado.

O que diz o roteirista: “Eu evitei por muito tempo mexer nas minhas cicatrizes emocionais. Sinceramente quis contar histórias sem falar disso. Achei possível. Mas eu jamais seria feliz como escritor me escondendo. Quem sou vem de uma vivência específica e é por esse filtro que vejo o mundo. E agora que tantos leitores vieram me dizer como se emocionaram e se identificaram com o que digo, estou confiante de que preciso usar minha caneta pra escrever futuros possíveis para os meus.

Dois livros acadêmicos

“Viagem incompleta: a experiência brasileira”. São Paulo: Senac, 1999.

“Dicionário da escravidão e liberdade”. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

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As máscaras são sempre simbólicas — um histórico sobre o que revelamos http://flaviagasi.blogosfera.uol.com.br/2020/05/02/as-mascaras-sao-sempre-simbolicas-um-historico-sobre-o-que-revelamos/ http://flaviagasi.blogosfera.uol.com.br/2020/05/02/as-mascaras-sao-sempre-simbolicas-um-historico-sobre-o-que-revelamos/#respond Sat, 02 May 2020 07:00:11 +0000 http://flaviagasi.blogosfera.uol.com.br/?p=195 Falar de máscaras como símbolos soa quase como um pleonasmo: a máscara é sempre simbólica. Ela representa algo para alguém, e pode ser lida mais corretamente por pessoas da mesma cultura. Assim, hoje em dia, quando você lê a palavra “máscara”, não deve se lembrar do carnaval (mesmo que tenha acontecido há pouco), mas da máscara que você fez ou comprou para se proteger e proteger aos outros da Covid-19. Na realidade, toda imagem funciona assim – a gente acessa em nós aquilo que está mais presente no momento, ou mais arraigado na cultura. Por vezes, essas duas coisas são apenas uma. Hoje em dia, contudo, não é o caso.

Por conta dessa natureza mutável, as máscaras são bem interessantes de serem estudadas. Elas desempenharam papéis totalmente diversos ao longo da história, e mesmo na hora de entender a raiz do termo, já vemos possibilidades bem diferentes. Máscara pode ter origem na palavra do latim antigo masca, que significa “espectro”, ou da árabe maskharah, sinônimo de “palhaço” e de “disfarce”. Entre o ocultamento, o sorriso, e a faceta da morte, as máscaras sempre tiveram presentes nas mais variadas culturas, sendo usadas por contadores de histórias, líderes religiosos, festeiros, artistas, entre outros.

Pintura rupestre de caçadores mascarados

A máscara e o animal oculto

Na América do Sul, sabemos que muitos povos indígenas usavam máscaras em suas cerimônias, que simbolizavam animais, pássaros e insetos. Hoje temos pinturas rupestres do mundo tudo, que mostram caçadores mascarados também mimetizando animais. Acredita-se que essas máscaras serviam como catalisador para carregar o espírito metafórico dos animais.

Essa relação com os animais também pode ser vista na cultura dos esquimós do Alasca, que acreditavam que cada pessoa tinha uma vida dupla, uma seria o seu lado humano, conhecido pelos outros; é a outra parcela seria seu lado animal. Assim, eles tinham máscaras com faces duplas. Em algumas festas, o lado oculto era revelado.

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Essa relação homem-natureza-animal é bem demonstrada em rituais xamânicos, e partem sempre de uma dialética de revelação-ocultamento, que parece condizente com esse ser duplo da cultura esquimó. A máscara não serve para ocultar apenas, serve para revelar algo que o corpo sozinho não pode fazer. A gente poderia falar a mesma coisa nas nossas roupas, cortes de cabelo, maquiagem, tatuagens. Todos esses acoplamentos a nós mesmos servem para mostrar algo que o corpo não podia mostrar sem eles. Eles são máscaras, que ocultam algo que não queremos (de uma olheira a uma pele nua), e que revelam muitas das nossas intimidades.

Podemos colocar aqui também a discussão de qual seria a máscara real: o corpo em que nascemos ou o corpo que apresentamos à sociedade. Quando um super-herói coloca uma máscara para proteger sua identidade secreta, ele revela quem verdadeiramente é (o super) ou oculta quem verdadeiramente é (a pessoa)? Assim, o disfarce é nossa verdade? Talvez sejamos exatamente a dialética entre essas duas coisas, como coloca Bachelard em seu texto “A Máscara”:

“Se o ser mascarado pode entrar de novo na vida, se quer assumir a vida de sua própria máscara, ele se confere facilmente a habilidade da mistificação. Acaba por acreditar que a outra pessoa toma sua máscara por um rosto. Crê simular ativamente após ter-se dissimulado facilmente. A máscara é, assim, uma síntese ingênua de dois contrários muitos próximos: a dissimulação e a simulação” (BACHELARD, 1986:165).

Máscara de Arlequim do carnaval veneziano

Máscaras e o ritmo coletivo

Os gregos antigos usavam máscaras em festas dionisíacas, regadas a dança, música, cantos, bebidas e orgias. As danças mascaradas não foram empregadas apenas na Europa, mas tiveram caráter ritualístico em diversos povos. No Brasil, o povo Tukuna evoca os espíritos em rituais de cura, com tambores, cantos e máscaras. Festas como bumba-meu-boi, cazumbá e o carnaval também trazem máscaras.

Mesmo quando o ritual a Dionísio foi proibido, sendo considerado pagão no Império Romano, as festas em Veneza traziam máscaras caras (até que foram proibidas pela polícia). O uso da máscara por coletivos, contudo, sempre esteve calcado na possibilidade de ser muitos. Nos teatros grego e japonês, o uso das máscaras no palco era quase como uma comunhão espiritual, que dava vida aos personagens, enquanto protegia os atores de serem imbuídos por maus espíritos.

Em seu livro “Filosofia Mestiça”, o filósofo Michel Serres mostra como Arlequim pode ser muitos em um, exatamente pelo uso da máscara. Podemos ver que, muitas vezes, as máscaras serão usadas com esse intuito – somos muito, somos legião – em obras que tratam de política, e mesmo na vida real. O personagem V, do quadrinho “V de Vingança”, de Alan Moore, não usa uma máscara apenas para se esconder como indivíduo, mas para poder ser muitos, ou todos. É uma amálgama de pessoas, em que a máscara para de revelar o oculto de uma pessoa, mas se torna uma voz que estava oculta por estar oprimida. Assim, faz muito sentido que esse conceito se espalhe em protestos políticos, como os chamados black blocs, manifestantes mascarados que usam suas máscaras para dar mais voz aos seus ideais do que seus individuais. A pesquisadora Rita de Cássia Fossaluza Ferreira comenta mais sobre isso em seu trabalho “Máscaras Como Símbolos De Comunicação E Expressão” – e você pode encontrar o link na bibliografia.

As máscaras que expressam ideais ou divindades (mesmo que sejam festeiras ou palhaças) nos lembram da multiplicidade da humanidade, e podem revelar nossos maiores desejos ou ideais. Gilbert Durand, em “Estruturas Antropológicas do Imaginário“, comenta que: “(…) da cosmética ao teatro passando pela coreografia, a escultura das máscaras e a pintura. As máscaras ‘estão na vanguarda da defesa contra a morte’, depois laicizam-se e tornam-se suportes da emoção estética pura” (DURAND, 2002:405)

Pequena amostra da diversidade de máscaras africanas

Máscaras iniciáticas

Quando perdemos o contato com a cultura, também perdemos a valorização do uso da máscara. Por exemplo, as máscaras sempre fizeram parte da cultura africana, e imaginamos que elas fossem vistas como objetos místicos. Sua função era a de disfarçar a pessoa que usa, para que ela pudesse entrar em contato com os espíritos, absorver sua força, e usar em benefício da comunidade. Assim, as máscaras podiam ser vistas em todos os tipos de ritual: da cura ao casamento, da iniciação aos funerais. Algumas das culturas africanas as utilizavam para identificar membros de sociedades secretas.

Porém, não sabemos exatamente que máscara era usada para que e com qual finalidade. Quando os europeus chegaram à África, eles acharam que era tudo muito curioso, mas não tiveram muita vontade de entender, realmente. Apenas agora, os historiadores voltaram a estudar as máscaras que estão em museus.

Também na África, no Egito Antigo, havia uma valorização da morte expressa por máscaras. O processo de mumificação é como um mascaramento do corpo a ser sepultado, que podiam levar pedras precisas e outras riquezas, dependendo do status do morto. Esse tipo de valorização tem bastante a ver com a visão da máscara como espectro. Para Bachelard, um convite à morte pode significar apenas uma morte social. Ou seja, um convite para se conhecer:

“Somos seres profundos. Ocultamo-nos sob superfícies, sob aparências, sob máscaras, mas não somos ocultos apenas para os outros, somos ocultos para nós mesmos. (…) Entrar em nós mesmos não representa senão uma primeira etapa dessa meditação mergulhante. Percebemos que descer em nós mesmos implica um outro exame, uma outra meditação. Para esse exame, as imagens nos auxiliam. E muitas vezes acreditamos estar descrevendo apenas um mundo de imagens no exato momento em que descemos em nosso próprio mistério. Somos verticalmente isomorfos em relação às grandes imagens da profundidade.” (BACHELARD: 1990:259,260)

Ou seja, na dialética entre o que está oculto e o que está revelado, a máscara pode ser a interface, a síntese, entre esses dois contrários. Uma máscara iniciática é um convite para a sua intimidade. Neste momento pandêmico, certamente uma intimidade mais forçada e cheia de angústias (apesar de Bachelard colocar em “A terra e os devaneios do repouso: ensaio sobre as imagens da intimidade”, que toda intimidade vem com conflito e angústia). A máscara como símbolo de conexão entre o interno e externo nunca fez tanto sentido para mim como agora.

Para ler mais

BACHELARD, Gaston. (1986) A Máscara. In:______. O Direito de Sonhar. São Paulo:

Difel, 165-173 p

____________. (1990) A terra e os devaneios do repouso: ensaio sobre as imagens da intimidade. São Paulo: Martins Fontes. [1948]

DURAND, Gilbert. (2002) Estruturas antropológicas do imaginário: introdução a arquetipologia geral. São Paulo: Martin Fontes, 2002.

FERREIRA, Rita de Cássia Fossaluza. 2016. Máscaras Como Símbolos De Comunicação e Expressão. Disponível neste link.

https://unisal.br/wp-content/uploads/2016/03/Disserta%C3%A7%C3%A3o_RITA-DE-CASSIA-FOSSALUZA.pdf

SERRES, Michel. (1993) Filosofia mestiça. Tradução de Maria Ignez Duque Estrada. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.

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Covid-19 e a “jornada da heroína”: meu relato pessoal http://flaviagasi.blogosfera.uol.com.br/2020/04/16/covid-19-e-a-jornada-da-heroina-meu-relato-pessoal/ http://flaviagasi.blogosfera.uol.com.br/2020/04/16/covid-19-e-a-jornada-da-heroina-meu-relato-pessoal/#respond Thu, 16 Apr 2020 07:00:52 +0000 http://flaviagasi.blogosfera.uol.com.br/?p=184 Se me permitem, gostaria de fazer um relato pessoal. Não é exatamente o foco desta coluna, onde tento compreender questões da contemporaneidade olhando para a cultura na qual ela foi calcada: para seus mitos, lendas, para o seu passado, sua trajetória. Neste momento tão diverso, gostaria de escrever sobre como está a minha vida depois do aparecimento da Covid-19. Talvez, a gente se conecte de alguma forma.

Situação inicial

Logo nas primeiras semanas, eu tive sintomas. Sim, foram praticamente todos eles – e tudo começou com uma dorzinha de garganta, que logo se proliferou em formas diversas: tosse seca, falta de ar e febre, entre outros. Assim que entendi que eu poderia ter mais do que um resfriado, tentei fazer o teste apenas para dar de cara com a realidade: não tem teste para todo mundo. Depois de ir a alguns postos de saúde, cheguei à conclusão de que o melhor que eu poderia fazer era assumir que tinha realmente Covid-19 e praticar isolamento total.

No meu período afastada de tudo e de todos, entrei em algumas caixas de padrões, que talvez você tenha experienciado (ou talvez ainda esteja passando por elas). Li praticamente todos os artigos científicos em todos os idiomas e plataformas a que tinha acesso, ou os conseguia entender. Também passava meus dias vendo notícias, e a cada dez minutos dava um “refresh”, pedindo mais novidades. Mesmo se estivesse deitada, tentando descansar, minha mente logo corria para uma postura paranoica, que trazia lá seus benefícios: me sentia minimamente conectada com o mundo, e um tanto mais segura por ter todas as informações possíveis.

Foram sete dias de sintomas e quinze dias de isolamento completo. Moro em uma casa de vila, e raramente abri a porta, não tomei sol, e, sinceramente, mal olhei para o céu. Não queria me lembrar de que havia coisas lá fora. Foram 15 dias de mudanças rápidas no mundo, e eu tentei compreender tudo que podia, de notícia a notícia. Existe uma certa pressão para se estar bem, não apenas do mundo (permaneça produtiva, não pare), mas também da família, que fica – obviamente – preocupada. Como não tive sintomas fortes, me senti ok a maior parte do tempo, mas devo confessar que tinha medo à noite, quando a tosse se intensificava, e a falta de ar vinha. Era pouca, mas estava lá.

Atena

Descobri muita coisa sobre a Covid-19, incluindo um site que tinha médicos chineses tirando dúvidas das pessoas do mundo inteiro. Contudo, o restante da minha vida paralisou completamente, ou seja, tudo que não tinha a ver com o vírus estava distante de mim. Acho que isso é totalmente normal, mas começou a me incomodar imensamente. Talvez fosse o isolamento – e talvez a gente deva falar mais sobre saúde mental na próxima coluna –, que certamente amplificou a sensação de paranoia, talvez fosse apenas minha maneira de lidar com o que estava acontecendo. De qualquer forma, assim que comecei a me sentir melhor, passei a fazer duas coisas: pesquisar sobre o novo coronavírus online e tentar ser produtiva.

Ou melhor: passei a trabalhar. Sem parar. Não importava se era de noite ou domingo. O que é domingo hoje em dia, inclusive? É tudo dia, dia de focar e dia de permanecer fazendo alguma coisa. Começar projetos, resolver aquela pendência, tirar coisas da frente.

Olhando para trás, percebo que estava tentando não pensar naquilo que eu sentia, e mantinha a mente focada em tudo que podia ser mais facilmente analisado.  É aqui que gostaria de trazer para a conversa o “Jornada da Heroína“, livro escrito por Maureen Murdock. Afinal, se eu não puder ser heroína da minha própria história, tem algo de seriamente errado comigo.

Murdock argumenta que a jornada da heroína começa com uma situação inicial em que a protagonista se separa de valores considerados femininos em uma cultura, tentando se provar para uma figura paterna. Ou seja, a heroína começa como resultado do que seu pai idealizou. Murdock atribui a esse começo uma ligação entre a heroína e a imagem de Atena, a deusa grega que nasceu diretamente da cabeça de seu pai – ela era considerada uma deusa muito racional e forte, e é assim que vemos a heroína no começo.

Nesse momento, eu era a própria Atena: estratégica, guerreando contra minhas tarefas diárias. E, claro, quanto mais eu trabalhava, mais resultados isso me trazia. Maureen afirma que, depois de muitas provas, a protagonista se torna vitoriosa. Isso a faz ainda mais obstinada a ir atrás de grandes desafios, mas seus sucessos nunca são suficientes para ela, e, assim, ela precisa manter os aplausos. A heroína começa a perceber que tem algo faltando. Nenhuma vitória lhe deixa plena de verdade. Quando ela olha para um espelho, ela não sabe bem quem olha de volta.

Quanto a mim, sim: eu não andava falando de verdade com ninguém, não jogava, lia fantasia, estava totalmente distanciada de mim mesma, daquilo que me faz bem, daquilo que eu amo. Depois de um dia particularmente duro, que fiquei sem conseguir dormir, percebi que nada disso estava me fazendo bem.

Kali

“O que eu perdi nessa busca?”, essa é a pergunta que a heroína começa a se questionar na próxima parte da jornada. E foi o que começou a acontecer comigo. Cada um vive isso à sua maneira, para mim são as críticas constantes de se estar na internet. Nunca vou agradar a todos, e meu trabalho deixa isso bem claro em todos os momentos. Para Murdock, “a descida” é essa compreensão da própria incompletude. Isso gera uma tristeza muito grande que pode ser revelada por conta de brigas, da não aceitação, da inquietude. Apenas trabalhar não faz bem a ninguém, não se escutar é ainda pior.

Murdock coloca que esse é o momento em que a heroína abandona o local de seus aliados, e tenta se reconectar com o seu feminino, com as suas figuras maternas. E ainda mais formidável: com as figuras maternas que habitam dentro dela, sejam elas como Deméter – a mãe que dá vida, das colheitas, da terra na mitologia grega, símbolo de morte e ressureição; ou Kali – uma deusa hindu que representa a tríplice: criação, preservação, destruição.

Nomear as coisas é algo extremamente poderoso. Quando nos sentimos angustiados, entender de onde vem e porque estamos assim é o começo do processo de cura, temos que dar nomes aos nossos sentimentos. Para mim, meus medos giram em torno de impotência e abandono. Se eu não for perfeita, por que os outros deveriam estar do meu lado?

É aí que entra Kali. Na mitologia hindu, Kali é maternal de uma outra forma, não tem a imagem bondosa a que estamos acostumados. Ela reina sobre a morte, e, por isso, desperta medo em uma visão em que vida e morte são bem separadas. Na cultura hindu, no entanto, os aspectos de vida e morte estão conectados, e um precisa do outro para existir: é preciso destruir para poder criar de novo. Kali está conectada com os poderes de destruição, mas simboliza vida, permanência e morte. Ela é a Mãe Terrível, mas que pode ajudar a acabar com aquilo que precisa acabar, como os medos e as culpas; além de ensinar que é preciso defender os espaços e lutar pelo que se acredita, ou seja, transmutar a raiva.

Para quebrar meu próprio círculo, eu realmente precisava parar. E assim o fiz. Não trabalhei, joguei, dancei com meus móveis, li. Me dei alguns dias para apenas existir. Passei a tomar um pouco de sol de dia, em vez de ficar apenas na frente do PC. Isso vai resolver todos os meus problemas? Não. Mas, ao menos, posso nomeá-los, e saber que tenho direito a ficar triste, a sentir raiva, a ficar culpada. E mais importante: eu tenho direito de deixar o trabalho, as buscas por novos artigos sobre Covid-19, e de ver toda minha estratégia morrer. Isso não significa que estou menos produtiva. Estou em plena produção, mas de outras coisas: risadas, lágrimas, contemplação e a possibilidade de abrir aquele vinho e olhar para o céu, abraçar as pessoas virtualmente.

Perséfone

Para ser bem sincera, não cheguei ao estágio final da “Jornada da Heroína” nesta quarentena, e não tenho pressa de estar lá, não existe nenhuma linha de vencedores, e nenhum troféu.

Se a gente for levar em conta os escritos de Maureen Murdock, a próxima etapa está ligada à deusa Perséfone. Ela era muito bela e, por isso, Hades, deus do submundo, a raptou. Sua mãe, Deméter, deusa responsável pelas colheitas, começa a destruir as plantações para ter sua filha de volta. Como Perséfone já tinha comido frutos no submundo, ela não podia retornar ao Olimpo para sempre. Ficou combinado que ela passaria três meses com Hades – quando sua mãe se entristece e o inverno chega – e os outros 9 meses do ano com sua família. A primavera representa a subida de Perséfone, e o Outono, a descida ao submundo. Ela virou rainha do submundo e guardiã do mundo dos mortos. Perséfone, assim, representa a parte feminina que desceu até seu sofrimento e, com isso, pode guiar os outros em suas aventuras. Ela amadureceu e pode mediar sua parcela doce e sua parcela obscura.

Ou seja, Perséfone é senhora de dois mundos, ela pode ser Atena e Kali, ambas, ou uma e outra. Eu ainda não me sinto assim. Mas talvez falar sobre isso, e essa coluna em especial, talve seja o início de um novo momento para mim.

Fique bem. Ou então, fique o que você está: fique mal, brigue, chore, ria. Está tudo bem ser mais de uma coisa.

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Como fantasia e escapismo podem ajudar na quarentena http://flaviagasi.blogosfera.uol.com.br/2020/03/25/como-fantasia-e-escapismo-podem-ajudar-na-quarentena/ http://flaviagasi.blogosfera.uol.com.br/2020/03/25/como-fantasia-e-escapismo-podem-ajudar-na-quarentena/#respond Wed, 25 Mar 2020 07:00:01 +0000 http://flaviagasi.blogosfera.uol.com.br/?p=171 Muita gente está com dificuldade de se concentrar na quarentena, sentindo-se ansioso (a) ou triste. O que, obviamente, faz total sentido. Vivemos em um momento singular da história, e não sabemos muito bem como isso vai se desenrolar. Contudo, é muito importante que você fique em casa. E é aí que entra a arte, ou o entretenimento (para mim, essas palavras são sinônimas).

Nesta coluna, eu queria falar sobre escapismo. Geralmente, o termo é visto com maus olhos, como se escapar fosse algo indigno. Claro, que se escapar é a única coisa que dá significado ao dia, então realmente há algum problema na sua relação com o entretenimento. Por outro lado, o escapismo pode ser benéfico e ajudar a entender a si, trazer novas ideias, e criar relações diferentes com o mundo. A relação entre o escapismo e saúde mental começa com a fantasia.

(Arte baseada nos escritos de Tolkien)

Explorando o mundo mítico

Um dos autores de fantasia que defendia a função do escapismo foi J.R.R. Tolkien, da saga Senhor dos Anéis. Em seu livro Sobre Histórias de Fadas, Tolkien discute a função da fantasia no cotidiano da humanidade. Para ele, certas liberdades que a fantasia podem tomar são cruciais para a criação de um segundo tipo de mundo, um universo mítico: … “E de fato as histórias de fadas tratam em grande parte, ou ( as melhores) principalmente, de coisas simples e fundamentais, intocadas pela fantasia, mas essas simplicidades tornaram-se mais luminosas pelo seu ambiente. Porque o criador de histórias que se permite “tomar liberdades” com a Natureza pode ser seu amante, não seu escravo. Foi nas histórias de fadas que primeiro pressenti a potência das palavras e o prodígio das coisas, como  pedra, madeira, ferro, árvore e grama, casa e fogo, pão e vinho.” (TOLKIEN: 2006b, 67)

Ou seja, por conta de histórias de fantasia, podemos entrar em um mundo secundário Secundário “no qual nossa mente pode entrar. Dentro dele, o que ele relata é ‘verdade’: está de acordo com as leis daquele mundo” (TOLKIEN: 2006b, 67). O mundo da fantasia não é um mundo mentiroso, sabemos que ele não é realidade, mas podemos senti-lo como se fosse. Para Tolkien, a fantasia não é apenas ler, ver ou interagir com imagens, mas causa um tipo de imersão que cria mundos diferentes na nossa mente.

Tolkien (2006ª, 2006b), acredita que, por conta dessa imersão, histórias de fadas têm algumas funções: propor fantasia, recuperar mundos e imagens, permitir escapismo e dar consolo. Sobre o escapismo (ou escape, como chama no texto), o autor comenta que não é uma forma de negação de realidade, que nem sempre é agradável. O escape não causa alienação, pelo contrário. Tolkien coloca que ao se desvencilhar da realidade, acabamos entrando em contato com a própria realidade, mas de outras maneiras.

Isso pode trazer consolo, ou seja, a possibilidade de entender a realidade com uma visão mais otimista, porque, na fantasia, espera-se que o final seja “feliz”, como Tolkien coloca. Eu acredito que mesmo histórias que não terminam bem podem provocar esse tipo de catarse. Inclusive, A Poética, de Aristóteles, é uma obra que fala sobre a tragédia grega e sobre o seu potencial catártico.

Figura 2 – Tragédia grega como impulsionadora de catarse

A catarse

Em explicações rápidas, Aristóteles escreveu a Poética como uma forma de crítica literária, uma exposição de teoria e prática de poesia. Para o filósofo, a tragédia é uma imitação da ação. Ela é séria, completa, e contendo uma magnitude e prosa embelezada, dividida em partes, pela ação e não pelo discurso, pode levar à catarse. Para os gregos, a palavra Katharsis significa purificar, purgar, clarificar.

O livro mostra diversos apontamentos sobre como e porque Aristóteles acredita na tragédia como fomentadora de catarse, mas quero falar de dois em especial. De acordo com o autor, a tragédia mostra a história de um herói com falhas, humanizado, que aprende algo sobre si, e, assim, o público pode aprender juntamente com o protagonista. Pata tal, deve conter ou peripécia (mudança da fortuna) ou descobrimento (passagem da ignorância ao conhecimento), ou, preferenciamente, ambos.

A peripécia “é a mutação dos sucessos no contrário, efetuada do modo como dissemos; e esta inversão deve produzir-se, também o dissemos, verossímil e necessariamente. Assim, no Édipo, o mensageiro que viera no propósito de tranquilizar o rei e de libertá-lo do terror que sentia nas suas relações com a mãe, descobrindo quem ele era, causou o efeito contrário(…).”  Ou seja, ela não deve ser casual, e sim fruto de alguma desmedida – uma falha – do herói que deve surgir da própria história, provocando assim a catarse.

A anagnórise (reconhecimento) ocorre quando a peça mostra para o herói a sua fortuna, o desfecho da sua caminhada. E, sim, no caso é um final trágico. E, a partir disto, o protagonista tem uma revelação sobre si mesmo, sobre seus entes queridos e sobre seu entorno. A revelação dessa verdade muda a perspectiva e a reação do herói.

Assim, mesmo um mundo fantasioso que não tem final feliz, também pode proporcionar um escapismo que ajuda a purgar e clarificar – ressinificar a realidade.

Figura 3 – O quadrinho Sandman, de Neil Gaiman

A função do devaneio

Outro paralelo que podemos traçar é com o escapismo e a função devaneio para o filósofo Gaston Bachelard. Para ele, o devaneio, as imagens poéticas, mediam a relação entre a humanidade e seu ambiente, e podem trazer benefícios com a criação, recriação, e arranjo da realidade: “Os devaneios do escritor não são fugas da realidade. São instantes verticalizantes de inefável significação, transpostos numa obra escrita. Se o devaneio se liga à realidade, ele a humaniza, a engrandece, a magnifica. Todas as propriedades do real, desde que sonhadas, tornam-se qualidades heroicas. Assim, para o devaneio da água, a água converte-se na heroína da doçura e da pureza. A matéria sonhada não permanece, pois, objetiva, pode-se dizer realmente que ela se evemeriza.” (BACHELARD: 1989, 205).

Ao criar um elo entre a realidade e nossas imagens, Bachelard coloca que o “devaneio é uma atividade psíquica manifesta” (BACHELARD: 1988, 144). Isto é, a fantasia não é mera, mas tem um papel importante nas nossas vidas. Neste momento de caos, a fantasia pode ser um local em que você pode ressinificar suas ideias, suas visões, medos. Sem deixar de lado o retorno para a vida real, pois o retorno é uma das partes mas importantes da jornada de qualquer herói, ou qualquer heroína.

 

Para ler mais:

ARISTÓTELES (1966). Poética. Introdução, tradução e comentários de Eudoro de Sousa. Porto Alegre, Globo.

BACHELARD. Gaston.(1989) A água e os sonhos. São Paulo: Martins Fontes. [1942].

___. (1988) A poética do devaneio. São Paulo: Martins Fontes. [1961].

TOLKIEN, J. R. R. As cartas de J. R. R. Tolkien. Org. por Humphrey Carpenter.

Curitiba: Arte & Letra Editora, 2006a.

_______. Sobre histórias de fadas. Trad. Ronald Kyrmse. São Paulo: Conrad Editora,

2006b.

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Proibido na China, jogo Plague Inc. ajuda a pensar na cura da covid-19 http://flaviagasi.blogosfera.uol.com.br/2020/03/20/como-os-games-podem-ajudar-na-cura-da-covid-19/ http://flaviagasi.blogosfera.uol.com.br/2020/03/20/como-os-games-podem-ajudar-na-cura-da-covid-19/#respond Fri, 20 Mar 2020 07:00:50 +0000 http://flaviagasi.blogosfera.uol.com.br/?p=160 Existe uma teoria que diz que videogames podem ajudar a criar soluções práticas para os problemas do mundo. Claro, isso não se aplica necessariamente a todos os tipos de videogame. Antes de entramos nesse tópico, há alguns pontos que eu gostaria de esclarecer: a premissa de que jogos causam violência não é necessariamente comprovada. Há, por outro lado, muitas pesquisas que comprovam os benefícios de se jogar. Falo mais sobre o assunto neste vídeo:

Para aprofundar esta vertente, a designer de games Jane McGonigal publicou um livro chamado “A Realidade em Jogo: porque os games nos tornam melhores e como eles podem mudar o mundo”. Na obra, ela explana o resultado de sua pesquisa como criadora de jogos. Para ela, todo gamer entende de resolução de problemas, porque no mundo dos jogos “Não existe a frase ‘eu não consigo’”, coloca. McGonigal coloca que a aventura de qualquer jogo é composta de 99% de erros, apenas 1% de acertos, o que faz com que jogadores tenham o perfil ideal para descobrir novas possibilidades a cada novo cenário.

Veja mais:

“Sempre existe algo importante e específico para ser feito. O jogador sempre está prestes a salvar o mundo”, explica Jane McGonigal. Pelo tipo de envolvimento, que é prazeroso, o jogador vive momentos que aliam concentração, raciocínio rápido, entre outras habilidades cognitivas. E a cada instante, o jogo recompensa seu jogador, seja com um ponto a mais na sua árvore de habilidades, seja completando uma fase.

Caso tenha interesse, você pode ver um pedaço da palestra da pesquisadora aqui:

 

 

Assim, a questão de McGonigal é: se focarmos em criar games cooperativos em que muitos jogadores tentam achar a solução de um problema, talvez possamos descobrir respostas viáveis. Parece interessante, não?

Game foca em achar solução para a covid-19

Imagem do game Foldit, desenvolvido pela Universidade de Washington

O game Foldit foi criado pela Universidade de Washington, nos Estados Unidos, e ganhou uma atualização que, diz a universidade, pode ajudar no combate ao novo coronavírus. O vírus se prende a células humanas através de proteínas. Fodit já tratava de saúde, mas o novo quebra-cabeças se foca em criar uma proteína antiviral, capaz de se conectar à proteína do vírus e, assim, impedir que ele se prenda às células humanas. Isso faria com que o agente infeccioso pare de se reproduzir. O cientista, Brian Koepnick, afirma, em um vídeo, que o game age exatamente como as pesquisas: “Testamos mais de uma vez para comprovar eficácia”.

Foldit já conta com mais de 200 mil jogadores. Se você tiver interesse, pode buscar mais informações no game, no quebra-cabeças específico 1805b dentro de Foldit, e no vídeo abaixo:

Games que podem conscientizar

(Jogo Plague Inc. foi banido na China)

O game revela a vida, pois nasce em uma cultura e não existe fora dela. Assim, certos games podem ajudar a conscientizar da necessidade de isolamento social, por exemplo. Claro, também pode ajudar a reafirmar uma visão mais histérica da sociedade. Mas não porque o game é bom ou mau, e sim porque ele é visto por diferentes subjetividades. Se partimos do princípio de McGonigal, muitos games podem ser utilizados para educação ou conscientização.

No momento, um jogo bem comentado nas mídias (e por alguns governos) é Plague Inc. Trata-se se um videogame de simulação e de estratégia em tempo real. O jogador pode atuar como 10 tipos de patógenos diferentes, cujo objetivo é aniquilar a raça humana. A empresa desenvolvedora, Ndemic Creations, do Reino Unido, informa que Plague Inc. reconhecido pelas autoridades de saúde por usar dados do mundo real, e, assim, ter certa veracidade em como as doenças se espalham.

Cuidado, o objetivo aqui não é ser um game educacional ou científico, como é o caso de Foldit. A Ndemic Creations chegou a fazer pronunciamento a respeito disso depois de seu game ser banido na China por “conteúdo ilegal”. A empresa diz que Plague Inc. não é “educativo ou informativo”. Ou seja, ele é apenas um jogo. Contudo, aliado ao esforço humano de um profissional de educação, jogos como o Plague Inc. podem ser utilizados como forma de conscientização societária. Afinal, seu modelo de infecção surgiu de simulações com dados do mundo real.

O potencial do uso do game com foco educacional é um conceito que se solidificou bem antes de McGonigal. Segundo Greenfield, ao acrescentar o processo de imersão, o game pode, “ao contrário da leitura, do rádio ou da televisão, a tecnologia interativa para computadores pode propiciar à criança o papel ativo tão essencial ao processo de aprendizagem” (GREENFILED, 1988:114)

(O mundo de Plague Inc. já um tanto infectado)

A função do jogo na sociedade, para Huizinga (1938), é o de completar o conhecimento do indivíduo, em um ambiente livre de pressões, adequado para a investigação, exploração e resolução de problemas. A investigação e a exploração são conceitos aplicados na estética da simulação do labirinto, uma lógica presente em ambientes de entretenimento e aprendizagem.

Tendo isso em mente no momento do desenvolvimento, os games tornam-se espaços de aprendizagem para práticas colaborativas, através de simulações marcadas por formas de pensamento não-lineares que envolvem negociações, abrem caminhos para diferentes estilos cognitivos e emocionais (noções apresentadas por Turkle, em 1997).

Gee (2004), em seu livro “O que os games têm a nos ensinar sobre aprendizado e literacia”, afirma que os jogos permitem aos jogadores: a) aprender a experimentar (ver e atuar sobre) o mundo de uma forma nova; b) obter potencial para unir-se e colaborar com um novo grupo de afinidades; c) desenvolver recursos para uma aprendizagem futura e para a resolução de problemas nos âmbitos semióticos que estão relacionados com o jogo; d) aprender a pensar sobre os âmbitos semióticos como espaços  de  desenho que implicam e ‘manipulam’ gente de determinadas maneiras, e os ajudam a criar, por sua vez, certas relações na sociedade entre indivíduos e os grupos de pessoas, alguns dos quais têm importantes implicações para a justiça social.

O processo imersivo, a meu ver, sempre deve ser levado de volta para a sala de aula, ou para o educador. Assim, sejam games criados com o propósito de pesquisa, ou com o propósito de entretenimento, os jogos podem ser uma ferramenta importante para conscientizar, e até ajudar na cura, dos problemas contemporâneos.

Para ler mais

GEE, James Paul. “Learning and Games.” The Ecology of Games: Connecting Youth, Games, and Learning. Edited by Katie Salen. The John D. and Catherine T. MacArthur Foundation Series on Digital Media and Learning. Cambridge, MA: The MIT Press, 2008. 21–40.

GREENFIELD, Patrícia Marks. O Desenvolvimento do raciocínio na era da eletrônica: os efeitos daTV, dos computadores e videogames. São Paulo: Summus, 1988.

HUIZINGA, Johan. Homo Ludens: o jogo como elemento cultural. São Paulo: Perspectiva,1990.  [1938]

MCGONIGAL J. A realidade em jogo: porque os games nos tornam melhores e como eles podem mudar o mundo. Rio de Janeiro: Bestseller, 2012.

TURKLE, Sherry. A vida no ecrã – a identidade na era da Internet. Lisboa: Relógio D’água, 1997

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Estigma sobre os chineses: seria o coronavírus a nova “Praga do Egito”? http://flaviagasi.blogosfera.uol.com.br/2020/02/05/estigma-sobre-os-chineses-seria-o-coronavirus-a-nova-praga-do-egito/ http://flaviagasi.blogosfera.uol.com.br/2020/02/05/estigma-sobre-os-chineses-seria-o-coronavirus-a-nova-praga-do-egito/#respond Wed, 05 Feb 2020 07:00:18 +0000 http://flaviagasi.blogosfera.uol.com.br/?p=146 Desde o momento em que o coronavírus foi classificado como uma emergência de saúde global pela Organização Mundial de Saúde (OMS), muitas ações se deram em consequência, como esperado. Inclusive, frente a uma epidemia, há diversas atitudes de contenção que realmente devem ser tomadas. Em momento nenhum escrevo esta coluna para suavizar a importância do olhar para saúde. Contudo, epidemias são, historicamente, momentos em que nossos preconceitos são vazados, e que nosso sistema de crenças se mostra totalmente aparente.

Figura 1 – Cuidado, esta imagem ilustra fake news

De acordo com algumas reportagens, já se espalha o pânico e atitudes racistas são vistas contra os povos chineses (e algumas contra os povos asiáticos em um geral). A reportagem da Folha de S.Paulo evidencia que alguns sino-brasileiros sofrem preconceito apenas por andar na rua: “Ela falou que eu ficava espalhando doenças pra todos e me chamou de nojenta (…) e ela ficou me acompanhando pela janela do metrô e me mostrando o dedo do meio”, conta um relato da reportagem da Folha. “esse povo contamina tudo”, diz outra pessoa.

Veja também:

A reportagem do Intercept comenta sobre o racismo visto em desinformação e em fake news, como a imagem de sopa de morcegos – que dizia que a origem do vírus foi porque chineses comem morcegos. Esta notícia é falsa. O artigo comenta que “grupos bolsonaristas no WhatsApp foram inundados de boatos, em forma de ‘breaking news’, que diziam que os chineses estavam morrendo caídos nas ruas, que pais abandonaram filhos no aeroporto ao saberem da contaminação e que 23 milhões de pessoas estavam em quarentena e 112 mil haviam morrido”. Apesar de todo o alarme, tudo isso é falso.

Uma das coisas que ambas as matérias, e muitos comentários por aí, têm em comum é tratar o povo asiático como um tipo de enxame, que vêm em bandos, roubam o trabalho dos outros, e espalham doenças. Fiquei muito pensativa sobre essa imagem, porque ela me lembra dois momentos diferentes, além de evocar um tipo de mensagem. Vamos começar pela imagem.

O imaginário da larva

Figura 2 – O formigar de uma imagem pode rapidamente se transformar no fervilhar de larvas

Esse tipo de enxame, para mim, tem bastante a ver com a questão do formigamento, do fervilhar. Como se um povo pudesse agir como um enxame, e formigasse pelas ruas, como pragas. Bachelard, no livro “A Terra e os Devaneios do Repouso”, fala que “em numerosas obras, ligou-se diretamente o formigamento da formiga ao fervilhar da larva. É este movimento que, imediatamente, revela a animalidade à imaginação e dá uma aura pejorativa à multiplicidade que se agita. É a este esquema pejorativo que está ligado o substantivo do verbo fervilhar, a larva”. (BACHELARD, 1990:43). Durand, em seu “Estruturas Antropológicas do Imaginário”, concorda com esta linha de raciocínio: multiplicidade pode se tornar uma imagem de agitação e de caos.

A questão então é: de onde vem isso? Por que tendemos a reduzir toda a complexidade de um povo a uma questão fervilhante? Note que não há nenhum motivo racional para temer asiáticos no Brasil, não há nenhum caso comprovado de coronavírus aqui – e se houvesse, não temos como saber se os portadores são apenas asiáticos. Em um mundo globalizado, não podemos imaginar que apenas uma raça seja responsável por espalhar um vírus.

Durand comenta que: “Para a consciência comum, todo inseto e todo verme é larva. (…) Tema que Hugo vai buscar ao Apocalipse onde gafanhotos e rãs – essas velhas pragas do Egito! – se conjugam para simbolizar o mal (…). Esta repugnância primitiva diante da agitação racionaliza-se na variante do esquema da animação que o arquétipo do caos constitui. O inferno é sempre imaginado pela iconografia como um lugar caótico e agitado, como o mostram ou o afresco da Sistina, ou as representações infernais de Bosch, ou a Dulle Griet de Breughel.” (DURAND, 2002:37-38). Ou seja, para o autor, essa repugnância que sentimos do diferente, do que se movimenta de maneira diferente daquilo a que estamos acostumados, acaba por revelar nosso sistema de crenças, em especial a crença em um inferno.

A imagem de inferno que temos é, realmente, um fervilhar de castigos, como revela a imagem de Bosch, citado por Durand:

Figura 3 – “Mulher-Esqueleto”, de Bosch

As pragas do Egito

E esse tipo de poder divino de destruir uma população ou deuses menos dignos pode ser visto na Bíblia. Inclusive, é um tipo de narrativa que é repetida pelo livro sagrado, e talvez mais lembrado pelas pragas do Egito – também citadas no texto de Durand acima. As pragas não foram apenas um castigo de Deus para que o faraó deixasse seu povo partir, foram também uma amostragem de superioridade dos Deuses Egípcios.

Para quem não se lembra, aqui vão as pragas e os Deuses Egípcios associados a elas:

  1. As águas do Rio Nilo tingem-se de sangue, os rios foram contaminados, todos os peixes morreram. Não apenas um enfrentamento ao deus-Nilo, Hápi, como aos peixes sagrados na cultura egípcia.
  2. Rãs cobrem a terra. A deusa Heqt simbolizava a rã e era símbolo de fertilidade e de ressurreição.
  3. Piolhos atormentam homens e animais. Os sacerdotes do deus Tot da magia tentaram extinguir a praga, e não conseguiram.
  4. Moscas escurecem o ar e atacam homens e animais. Os sacerdotes de Tot também ficam impotentes.

Figura 4 – “A Sétima Praga”, de John Martin

  1. A morte dos animais. Muitos deuses egípcios estavam ligados a animais de pasto: Seráfis, ao gado; a deusa-vaca, Hator; a deusa do céu, Nut, também simbolizada como uma vaca.
  2. Pústulas cobrem homens e animais, onde vemos o mesmo tipo de subjugação.
  3. Chuva de granizo destrói plantações. Tirou controle da natureza dos deuses egípcios que as representavam, como o deus da água Íris.
  4. Nuvem de gafanhotos ataca plantações e os deuses egípcios da colheita.
  5. Escuridão encobre o Sol por três dias, o que seria um ataque a um deus poderoso, o deus-sol Rá.
  6. Os primogênitos de homens e animais morrem. O que, basicamente, subjuga todos os deuses egípcios.

Ou seja, faz algum tempo que associamos o poder divino à capacidade de purificar os menos dignos. O problema é como definir o que é o normal, o digno, e o menos digno. Esse tipo de discurso, contudo, já foi usado contra a população LGBTI+ numa época em que informações sobre a Aids eram menos divulgadas, por exemplo.

A “peste gay”

Figura 5 – Era comum chamar Aids de “peste gay”, mesmo em jornais reconhecidos

Por que a comunidade LGBTI+ era vista como a que apresentava um comportamento anormal? Falo bastante disso neste texto: Homo, bi, intersexo e até drag queen: a cultura LGBTI+ na mitologia. Contudo, a discussão sobre o que é um comportamento normal foi questionada muitas vezes pelo filósofo Michael Foucault. Como ponto de partida, podemos utilizar os livros “Vigiar e Punir” e “História da Sexualidade”. Em ambos, o autor explica que os grupos detentores de poder criam e determinam o que é normal. Essas normas podem ser relações econômicas, sociais, culturais. Ou seja, o normal é uma convenção de poder.

Quando o vírus do HIV começou a se espalhar, apesar de outros grupos estarem entre os tipos de risco, foi a comunidade LGBTI+ que deu o nome à doença: peste gay. Isso porque ser gay já era considerado um comportamento anormal para os que estavam no poder, então, uma epidemia só pode ser um tipo de ato divino, lançando mais pragas em deuses e população não merecedora. Ou seja, não foi a Aids que criou um estigma na comunidade LGBTI+; este estigma sempre existiu, e a Aids foi usada para legitimar o estigma. Aggleton & Parker comentam sobre isso em seus estudos sobre a doença: “Em última análise, portanto, estamos falando de desigualdade social. Para confrontar e entender corretamente as questões da estigmatização e da discriminação, seja em relação ao HIV e à AIDS ou a qualquer outra questão, é necessário, portanto, que pensemos de maneira mais ampla sobre como alguns indivíduos e grupos vieram a se tornar socialmente excluídos, e sobre as forças que criam e reforçam a exclusão em diferentes ambientes” (Aggleton & Parker, 2001:11-12).

Este fervilhar do Coronavírus me traz de volta as imagens do fervilhar das larvas, das pragas do Egito, da peste gay. O problema é que nenhuma destas narrativas apenas expôs um problema, ou uma doença. Todas remetem à questão do poder, do medo que temos do que difere de nós, ou do que difere do comportamento normal. Da cultura que é normal. Do rosto que é normal. Não é o Coronavírus que traz estigma à pessoas asiáticas, é nosso tratamento a elas que revela o estigma e o racismo que sempre tivemos. O Coronavírus é só uma maneira débil e bizarra que usamos para tentar legitimar nossos preconceitos. A multiplicidade de outrem não precisa ser feita de larvas, ela pode apenas existir.

PARA LER MAIS

AGGLETON, P., & PARKER, R. (2001). Estigma, Discriminação e AIDS (Coleção Cidadania e Direitos n° 1). Rio de Janeiro: ABIA.

BACHELARD, Gaston. (1990a.) A terra e os devaneios do repouso: ensaio sobre as imagens da intimidade. São Paulo: Martins Fontes. [1948].

DURAND, Gilbert. (2002) Estruturas antropológicas do imaginário: introdução a arquetipologia geral. São Paulo: Martin Fontes, 2002

FOUCAULT, M. (1985). História da Sexualidade: à vontade de saber. Rio de Janeiro, Ed. Graal.

______; (1987) Vigiar e Punir: história das violências nas prisões. Petrópolis: Vozes.

GOFFMAN, I. (1988). Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Petrópolis, Ed. Guanabara.

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Protesto: por que ele é saudável em uma sociedade http://flaviagasi.blogosfera.uol.com.br/2020/01/21/protesto-porque-isso-e-saudavel-para-uma-sociedade/ http://flaviagasi.blogosfera.uol.com.br/2020/01/21/protesto-porque-isso-e-saudavel-para-uma-sociedade/#respond Tue, 21 Jan 2020 13:00:50 +0000 http://flaviagasi.blogosfera.uol.com.br/?p=130 Neste momento de violência policial, em que em São Paulo um protesto contra o aumento da tarifa de ônibus não consegue andar 500 metros sem que seus integrantes sejam brutalmente combatidos, precisamos falar sobre protestos. Neste país em que há inúmeros projetos de lei que tentam criminalizar o direito de protestar, precisamos falar sobre rebelar-se, sobre criticar, e sobre apontar.

Protestar é algo maleável. Na gramática, não é apenas um verbo intransitivo: ele pode ser usado como transitivo – protestar ao que, a quem. Da mesma maneira, protestos tem formas diferentes de acontecer, com objetivos diferentes. No geral é para cobrar reflexão societária, influenciar opinião pública, como forma de autoexpressão. Em todo o protesto há um apontamento, uma crítica. Assim, protestar é sobre querer revelar algo. Quando há um protesto contra o aumento da taxa de ônibus, há diversos apontamentos sendo feitos ali, por exemplo. No caso: a disparidade entre salário mínimo e condições de vida, o lembrete de que ir e vir são direitos constitucionais, o fato de que muitas pessoas se deslocam muito na cidade de São Paulo para chegar aos seus empregos (a questão da periferia e do centro), entre outros.

Figura 1 – A Passeata dos Cem Mil, que ocorreu no Brasil em 1968, contra a Ditadura Militar

Ou seja, o protesto é sempre uma reação que pode se manifestar em um sem número de atos, como comícios, piquetes, carreatas, greves, boicotes etc. Em uma sociedade em que apontamentos não são escutados, essas vozes não necessariamente ficam abafadas por muito tempo. Elas podem se organizar em conflitos, choques ou rebeliões. Rebeliões não ocorrem em locais em que existe um poder que dialoga, mas em momentos em que há um poder verticalizado que deslegitima a voz de uma população. Geralmente, isso é um caminho, a imposição de um pré-totalitarismo. No totalitarismo, o governo proíbe partidos de oposição, não permite que seus cidadãos falem contra o Estado, controla a vida privada e pública do povo. Assim, proibir protestos é uma forma totalitária de agir, na política.

Veja também:

Resistência e esperança

Resistência e protesto também podem ser formados por atitudes que subvertem um poder totalitário. A gente vê esse tipo de coisa no nosso cotidiano, mas talvez podemos entendê-las ou percebê-las mais facilmente em obras de ficção. Por exemplo, no filme dos Vingadores, o vilão da trama, Loki, amedronta a população de uma cidade, ordenando que todos se curvem frente a ele. Um homem mais velho se recusa a se ajoelhar, e isso faz com que outros tenham a coragem de protestar contra um ato totalitário. Rosa Parks, por exemplo, foi uma ativista norte-americana, que ficou famosa por ter se recusado a sentar em seu devido lugar (destinado aos negros) e a não ceder seu assento no ônibus para um branco. Esta atitude se tornou o estopim para uma revolução.

Vemos esse tipo de comportamento que funciona como uma desobediência civil em diversas obras de cultura pop, como Katniss se oferecendo como tributo no lugar de sua irmã em Jogos Vorazes; ou Mulan, que decidi ir para a guerra no local de seu pai, mesmo sendo proibido. Como diz o filme Rogue One, revoluções são criadas em cima de esperança. Inclusive, a mitologia grega tem uma personificação da esperança, Elpis é o próprio espírito da esperança, ela carrega flores e uma cornucópia nas mãos – a cornucópia é um símbolo muito usado no paganismo por representar tanto o sagrado feminino quanto o masculino, especialmente no equinócio de outono, quando se agradece pela colheita.

Figura 2 – O Deus Hanuman, do Hinduísmo

O Hinduísmo conta a história de Hanuman, deus-macaco e uma encarnação do deus Shiva, que havia se manifestado na Terra para ajudar Vishnu com suas tarefas. Em uma delas, ele se sentiu tão impotente, pequeno, e não queria que outros fossem arrastados para o mesmo local que contemplou o suicídio. Contudo, ele decidiu tentar mais uma vez, e não apenas ganhou sua força de volta, como seu nome ficou associado à coragem e à esperança, que andam lado a lado nesta imagem.

Os deuses também se rebelam

Também há muitos casos de deuses que se rebelaram, especialmente em prol da humanidade (muitos deles ganharam castigos terríveis – eu falo mais disto no texto sobre tortura e abuso de poder (https://flaviagasi.blogosfera.uol.com.br/2019/11/19/tortura-e-abuso-de-poder-paralelos-entre-historia-e-mitologia/). Talvez o mais conhecido seja Prometeu, que desafiou Zeus para dar conhecimento à humanidade. Foi Prometeu quem moldou a humanidade a partir do barro, mas Zeus quem deu o sopro de vida. Contudo, quem se importava com a criação e a continuidade da espécie era o Titã, que trouxe o próprio fogo do Sol para trazer calor para os povos – o calor e a luz são lidos como símbolos da iluminação do conhecimento. Prometeu permanece torturado até ser libertado por Héracles (Hércules), filho de Zeus. Nem o mais poderoso entre os deuses foi capaz de manter o rebelde acorrentado para sempre.

Outra história interessante é de Maui, semideus da mitologia polinésia, que usou de toda a astúcia para criar caminhos para a humanidade. Ele faz com que o Sol ande mais devagar para que os humanos tenham mais luz no dia, usa seu sangue para atrair peixes para a superfície do mar, e até tenta buscar a imortalidade para seu povo, e é por isso que acaba morto. Tudo que Maui fez enfureceu deuses e criou muitos problemas para o semideus, mas ele é considerado um campeão da humanidade.

Figura 3 – O benfeitor da humanidade, o deus Anansi

Anansi aparece em mitos da África Ocidental e do Caribe. Ele tem muitas histórias sobre sua esperteza, e uma das mais conhecidas diz respeito à humanidade. O poderoso deus do céu, Nyame, deu a complicada missão de capturar algumas das criaturas mais temidas da selva, usando apenas a sua inteligência. Anansi, contudo, conseguiu levar as feras uma por uma para Nyame, que teve que lhe contar todas as histórias sobre a criação do mundo. Anansi, então, leva tudo para a humanidade e as compartilha, dando aos homens os segredos da criação. Ele se torna um símbolo da resistência mítico, e real. Assim como pincelado pelo livro e série Deuses Americanos, acredita-se que Anansi tenha desempenhado um papel importante na vida do povo escravizado; servindo de inspiração para a criação de estratégias de resistência. Os contos de Anansi (que ele aprendeu com Nyame) ainda são contados como um meio de continuidade de toda uma cultura que se rebela contra o extermínio até hoje.

Todas as histórias mostram a coragem que há na resistência, no protesto, e na desobediência contra Estados ou figuras políticas poderosas. Tentar destruir o protesto também é tentar esmagar os próximos heróis da humanidade. Contudo, como bem mostram os mitos, isso é impossível. Mesmo que o castigo seja efetivo por anos, ele nunca é infalível.

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A guerra é inerente ao ser humano? O que registra a mitologia http://flaviagasi.blogosfera.uol.com.br/2020/01/15/a-guerra-e-inerente-ao-ser-humano/ http://flaviagasi.blogosfera.uol.com.br/2020/01/15/a-guerra-e-inerente-ao-ser-humano/#respond Wed, 15 Jan 2020 10:00:59 +0000 http://flaviagasi.blogosfera.uol.com.br/?p=118 Toda vez que começa um novo conflito entre nações, eu começo a me perguntar de onde veio o conceito da guerra. Não daquela peleja específica, provavelmente é alguma coisa com petróleo, e sempre tem ótimos colunistas que comentam a situação. Na verdade, pego-me pensando em como começamos a guerrear, se é uma coisa inerente da humanidade, se não é.

Nas mitologias, há diversos deuses guerreiros, mas as narrativas não necessariamente falam de uma guerra como conhecemos hoje, e algumas culturas, como a egípcia, têm deuses diversos para aspectos diferentes dos conflitos.

Assim, decidi investigar. Um amiga (obrigada, Robs!) me indicou um livro que tenta compreender o que é guerra, e faz um compêndio de teorias, descobertas etc. “Uma História da Guerra”, de John Keegan, tenta argumentar e entender outra obra (uma das mais seminais da área): “Da Guerra”, de Carl von Clausewitz. Clausewitz diz que a guerra é uma “continuação das relações políticas”, mas “com a entremistura de outros meios”. Ele argumenta que a natureza da guerra é servir a si mesma – sugiro ler mais no livro do autor para compreender com profundidade.

Leia também:

Para Keegan, esse discurso é incompleto, pois leva em conta um conceito de guerra depois da criação de Estados, nações que guerreiam em uma mistura de tática e diplomacia, que gerou diversas definições de guerra, como guerra fria, civil, preservativa, psicológica, entre outras. Assim, em “Uma História da Guerra”, ele parte para comentar sobre conflitos que aconteceram antes do nascimento e da visão estruturada e contemporânea do tema. Dois casos que ocorreram com civilizações diferentes, mostrados no livro, me chamaram a atenção.

Conflitos antigos

O primeiro ocorreu na Ilha de Páscoa, ao longo de 1.000 e 1.700 d.C.

Nesse período, os habitantes da ilha decidiram erguer mais de 300 estátuas gigantes em cima de seus templos. Ao longo desse tempo, além das estátuas, o povo inventou a escrita, muito usada por seus sacerdotes. O poder era do clero, mas quem mediava eram chefes. Contudo, os ilhéus passaram a tomar menos conta do meio ambiente, a comida se tornou mais escassa, e uma classe de guerreiros descobriu a obsidiana e passou a fazer lanças. Estes homens, chamados de “homens com as mãos sangrentas” passaram a vencer os conflitos, o que gerou a criação de um clã oposto, que vivia no outro lado da ilha. As estátuas antigas começaram a ser derrubadas, outro sistema religioso entrou em vigor, mais focado em batalhas. Em 1722 sobraram apenas 111 pessoas na Ilha de Páscoa, e arqueólogos descobriram evidências de canibalismo durante o período de guerra. Ou seja, depois que os “homens com as mãos sangrentas” se tornaram o patamar mais importante da sociedade, os habitantes da Ilha de Páscoa foram praticamente dizimados, sua cultura complexa foi trocada por uma que se focava apenas na batalha e na vitória. Keegan coloca que a maior parte dos sinais de como a guerra foi travada (existência de liderança, trincheiras etc) está alinhado com o pensamento de Clausewitz sobre como se trava uma guerra. Contudo, ela foi travada por falta de recursos naturais, e mudança na cultura religiosa. Podemos até afirmar que isso faz parte do escopo da política, mas não necessariamente se adequa a uma noção estadista estruturada. Talvez possamos dizer que uma mudança na maneira de ver o mundo, na cultura, tem tanta importância quanto as relações estadistas.

Figura 1 – As estátuas da Ilha de Páscoa

Outro caso histórico foi do povo Zulu. Em sua origem no século XIV um povo pastoril, gentil com estrangeiros que não carregavam armas, não eram bélicos ou imperialistas. Seus chefes não estavam acima da lei. Para eles ubuntu (humanidade) era o valor mais importante. Havia conflitos, que geralmente faziam com que o perdedor se deslocasse de terra como punição. Ele refaria sua vida em uma terra pior, e pronto. Os conflitos eram realizados corpo-a-corpo, com armas de madeira. E, “se um guerreiro matasse um oponente, estava obrigado a deixar imediatamente o campo de batalha e submeter-se à purificação, caso contrário o espírito da vítima iria certamente trazer uma doença fatal para ele e sua família”. (KEEGAN, 693-699, Kindle)

Até que Shaka, chefe dos zulus, uma pequena tribo nguni, virou o comandante de um exército disciplinado, e, assim, dono de uma grande potência, que reduziu seus inimigos a tribos fugitivas. Além de alterar todo o sistema de pastoreio e de batalhas, Zulu criou uma forma de serviço militar, que deixava os soldados longe de suas noivas, o que controlava a natalidade. E uma taxa de tributos de produtos aumentou seu poderio material. Shaka, assim, alterou toda uma civilização, que deixou o ubuntu de lado no século 19, e passou a se focar em conflitos. O lance é que Shaka alterou o papel do Estado dentro da cultura dos zulus, e não perpetuou uma política militar, aperfeiçoando-a.

Figura 2 – O Império Zulu espalhou sua língua no sul da África

Keegan coloca que a ideia da guerra como uma continuação da política de uma nação veio diretamente da época da Revolução Francesa, não apenas pelos aspectos políticos do conflito, mas pelos pensadores da época (em especial Voltaire e Rousseau). Rousseau, por exemplo, não acreditava que a guerra era inerente de uma violência nascida do ser humano. Há filósofos que acreditam que a humanidade é violenta por natureza. Talvez isso seja difícil de acreditar em Rousseau, visto os exemplos acima. Mas a biologia diz que há alguma verdade neste pensamento, ou melhor, que a verdade é sempre mais complexa do que se parece.

Biologia de guerra?

A neurologia, por exemplo, ainda está incerta sobre como os processos de agressão são gerados e controlados no cérebro. O que se sabe é que nossas reações mais primitivas (no sentido do desenvolvimento cerebral) como medo, aversão ou ameaça (que servem tanto pra criar agressividade como para nos protegermos) estão no sistema límbico, unidade responsável pelas emoções e comportamentos sociais. Mas essas reações não funcionam sozinhas, estão ligadas com sistemas mais elaborados, como os lobos frontais. Ou seja, não atuamos rapidamente apenas porque estamos com medo, não há uma relação determinista de causalidade entre sentir-se acuado e atacar.

Falta de um hormônio chamado serotonina também pode aumentar a agressão, mas variações nos níveis de serotonina são raras. Da mesma forma, a testosterona aumenta a agressividade, mas “sua administração a ratos fêmeas que estão amamentando reduz a agressividade delas em relação aos machos, enquanto seu instinto protetor maternal é estimulado por outro hormônio simultâneo”, coloca Keegan.

Contudo, há um debate sobre a questão genética e uma possível seleção para a agressão: a mutação para a agressão é uma de suas formas e a agressividade é claramente uma herança genética que pode reforçar a chance de sobrevivência. Também há formas raras de constituição genética que estão correlacionadas com agressividade exagerada. De qualquer maneira, a proliferação desta mutação não ocorre de maneira natural, mas deve existir uma reação pelo meio, pela cultura. Ou seja, esses genes devem ser desejáveis para que continuem se reproduzindo.

Keegan ainda discute diversas possibilidades e teorias nascidas da psicologia e da antropologia. Sua conclusão é de que a cultura é “um fator determinante fundamental da natureza da guerra”. (KEEGAN, 7665-7666, Kindle). Contudo, pensamos nela como apenas política entre nações porque “a história escrita do mundo é, em larga medida, uma história de guerras, porque os Estados em que vivemos nasceram de conquistas, guerras civis ou lutas pela independência”. (KEEGAN, 7636-7639, Kindle).

Na mitologia

Figura 3 – Representação da deusa Pakhet15

Se olharmos a mitologia e histórias de bem antes da Primeira Guerra Mundial, por exemplo, veremos exemplos de deuses guerreiros de muitos tipos. No Egito antigo, havia diversas divindades ligadas ao combate. Onúris, por exemplo era adorado em uma região chamada Abydos, e era patrono do exército egípcio. Durante o seu festival, os egípcios travaram batalhas brincalhões entre os padres e as pessoas em que se batiam com paus. Contudo, não era um deus particularmente adorado até bem depois da história egípcia, quando o povo se encontrou em situações de conflitos.

Neite, por exemplo, deusa da guerra e da caça. Ela fazia as armas dos guerreiros e guardava seus corpos quando morriam, mas não se sabe se seu papel era mais como caçadora ou como guerreira. O que se imagina é que a noção de guerra era muito mais ligada à subsistência. Essa dupla função também existia na deusa leoa (ou gata dependendo da região) Pakhet, que tratava da cura, da proteção, e da guerra. Como caçadora, ela podia livrar as casas de criaturas venenosas ou perigosas. Era tão poderosa que sua respiração formava o deserto, e podia ser impiedosa na guerra, contudo, também protegia os faraós após a sua morte. Dessa maneira Pakhet era uma deusa complexa, que podia dar ou tirar vida. Contudo, estava sempre ligada a uma morte ritual, e à proteção pós-morte.

Na cultura Yorubá, a guerra está ligada à tecnologia, na figura de Ogum, que forja suas ferramentas tanto para caça e agricultura, quanto para os conflitos. Ou seja, Ogum não apenas podia travar guerras, mas deu ao povo a possibilidade de criar algo a partir da natureza, manipular a terra para dar vida. E, enquanto outros orixás, como Oyá (Iansã) amem o campo de batalha, nenhum deles trava a guerra apenas pela guerra.

Em uma cultura mais bélica, como a Grécia antiga que já contava com a cidade-estado Esparta, por exemplo, começamos a ver deuses que podem ser tomados por uma segue de sangue, como é o caso de Ares, que pode ser visto como um deus da guerra mais selvagem. Porém, quem realmente vencia as batalhas era Atena, mais estratégica, deusa da civilização, da sabedoria, da estratégia em batalha, das artes, da justiça e da habilidade. Ou seja, em Atena, também há essa mistura de papéis civilizatórios e de conflito, como na cultura Yorubá.

Talvez a diferença seja em entender o papel do guerreiro fora do contexto de guerras entre nações. Especialmente porque, fora Ares, mesmo o mais brutal dos deuses guerreiros não adentra os conflitos por uma questão da guerra pela guerra, mas por uma questão de proteção de um povo. Keegan coloca que há alguns dispositivos que ajudam a não deixar a guerra se alastrar: “O mais importante desses dispositivos é o ritual, que define a natureza do próprio combate e exige que, uma vez realizados determinados rituais, os litigantes reconheçam o fato de sua satisfação e recorram à conciliação, arbitragem e pacificação.” (KEEGAN, 7658-7660, Kindle). Assim, o conflito está ligado para a preservação da humanidade (ubuntu), e não para seu extermínio. Nesses momentos de pelejas, talvez seja importante que possamos fazer esta distinção.

 

PARA LER MAIS:

CLAUSEWITZ, Carl von. 1979. Da Guerra. São Paulo: Martins Fontes

EVANS, Michael. “Elegant Irrelevance Revisited: A Critique of Fourth Generation Warfare”, in Terriff, Karp e Karp, p. 68-69, 71-72

FREEDMAN, Lawrence. “War Evolves into the Fourth Generation: A Comment on Thomas X. Hammes”, in Terriff, Karp e Karp, p. 85;

KALDOR, Mary. 1999. New and Old Wars. Stanford: Stanford University Press.

KEEGAN, John. Uma história da guerra (Locais do Kindle 7658-7660). Edição do Kindle.

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