Tortura e abuso de poder: paralelos entre história e mitologia
A história da tortura é uma história de exercício de poder. Não aquele tipo de poder que todos temos, o poder de realizar tarefas do dia a dia, a potência de nos colocarmos no mundo. É uma história institucional, do uso das instituições contra uma pessoa. Aquele tipo de briga injusta – de um lado um pequeno David; de outro, um Golias com toda a sua pompa (e, no caso, com legitimação do Estado, manicômio ou igreja).
Assim como nos mitos, a tortura sempre começa de uma maneira fundamentada: há uma grande ameaça que deve ser dizimada, ou todos morreremos; mas sempre termina como uma forma de punição por ir contra Golias, falar mal de Golias, discordar publicamente de Golias… Ou seja, o que era um discurso de ameaça perde a força rapidamente, e se torna punição da diferença. Não tem certeza? Vamos lá que explico.
Vamos começar por mitologia. A mitologia grega, por exemplo, tem um grande cardápio de punições, torturas e castigos. Muitas delas parecem aquele tipo de violência justificada. No texto sobre lobisomens, falo que Zeus transformou um rei em lobisomem, pois ele comia carne humana. Há casos de figuras que causam destruição e, por isso, vivem sendo destruídos todos os dias. Sísifo era um homem terrível, era um assassino que aprisionava e matava viajantes. Zeus foi acorrentado no Tártaro, um abismo profundo cheio de sofrimento. Lá, Sísifo era forçado a empurrar sem cessar uma pedra gigante na montanha íngreme. A pedra era amaldiçoada a cair da montanha cada vez que Sísifo ficava tentadoramente perto do topo. O resultado? Uma eternidade de esforço inútil. E sem poder ir embora.
Veja também:
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Nesse caso, você pode até pensar que a punição servia ao crime. Alguns debateriam que não. De qualquer forma, o poder verticalizado – e com isso eu quero dizer que alguém detém o poder de fazer algo, e o outro lado não possui as mesmas ferramentas para uma luta justa – também cria situações calcadas em uma ética dúbia, uma moralidade baseada em egos. Como é o caso de Arachne. Conta a lenda que ela era uma mulher de exímios talentos na tecelagem. Assim, ela se gabava de ser provavelmente melhor que Atena, deusa da guerra, da sabedoria e também de tecelagem. Atena não gostou nadinha desse papo e veio para a Terra disfarçada de velha, a fim de uma competição. Atena tocou a testa de Arachne, forçando-a a sentir culpa e humildade. Arachne se enforcou, e Atena a trouxe de volta à vida como uma aranha, para que ela pudesse tecer eternamente. Ou seja, a Arachne ganha uma tortura infinita e imortal, apenas por um capricho dos deuses. Esses contos existiam para deixar claro que humanos não deveriam se meter em assuntos dos deuses. E aqui está a verticalização novamente. No caso, aqueles que aplicam o castigo são os próprios deuses.
Prometeu, um titã imortal, deu ao homem o dom do fogo que ele mesmo roubou do Monte Olimpo e, por extensão, de Zeus. Por isso, ele foi condenado a permanecer amarrado a uma rocha e a ter seus intestinos comidos por aves. De noite, o tecido se regenerava, e a punição começava de novo pela manhã. O fogo simbolizava a fonte de calor e luz que permitiu que os seres humanos realmente se tornassem seres com cultura, mas, durante a Idade Média, também representava a sabedoria ou o conhecimento divino. No entendimento pós-renascentista, Prometeu virou um tipo de ícone contra a tirania institucional. Aqui ele se torna um tipo de rebelde, que enfrenta uma organização gigante.
Tortura divina
Mais importante aqui é notar como, na nossa cultura em que permanecem tradições e crenças greco-romanas, a tortura está associada a uma espécie de castigo de um poder maior do que o humano. Um poder divino. Se observar um povo não for suficiente para tal afirmação, podemos olhar para outro tipo de mito, que foi escrito e lançado concomitantemente ao nascimento dos tribunais da Inquisição promovida pela Igreja Católica.
A Divina Comédia, de Dante Alighieri, não tem data de lançamento exata, mas estudiosos acreditam que a parte sobre o Inferno pode ter sido composta entre 1304 e 1307-1308. O Concílio de Viena, de 1311, dizia que os inquisidores tinham que pedir aprovação do bispo para a recorrerem à tortura, mas as origens da Inquisição datam de 1022, quando surgiu o primeiro tribunal contra hereges – apenas para contextualizar a obra em seu período histórico.
A Divina Comédia tem três partes distintas: Inferno, Purgatório e Paraíso. Dividido em círculos, cada esfera punia um tipo diferente de pecador. E antes de você pensar nas grandes falhas, vale notar que certos defeitos também levavam à danação eterna. Na chamada antessala do mal ficavam indecisos e covardes que eram picados por enxames de vespas. O sangue que saía das picadas se misturava com as lágrimas que escorriam até os pés. Estes eram roídos por vermes. Isso era a tortura dos indecisos.
Todas as pessoas que viveram antes de Cristo e que, portanto, não foram batizadas, ficavam no limbo, sem poder ascender aos céus. Sim, absolutamente todas as pessoas. Depois, vinham os círculos mais sérios dentro do mito cristão, como os que puniam o pecado da luxúria, gula, avareza.
Como tratamos de verticalidade: há o divino e a o submundo, então a queda se torna um tipo de tropo. Quem não é puro decai, cai para o inferno. Sobre o tema da queda, Gilbert Durand vai falar, no seu livro "Estruturas Antropológicas do Imaginário", que "esse tema da queda aparece como o signo da punição e vê-se multiplicado numa mesma cultura, como acabamos de verificar para a tradição grega e que se pode igualmente mostrar na tradição judaica: a queda de Adão repete-se na queda dos anjos maus. (…) Como sublinharam bem os etnólogos, este esquema da queda é exatamente o tema do tempo nefasto e moral, moralizado sob a forma de punição". (DURAND, 2002:114).
Da Grécia para o Cristianismo, as lendas sobre castigo e tortura vão se materializar em um evento bem real e que durou por séculos, a chamada Santa Inquisição. O livro Malleus Maleficarum, de H. Kramer e J. Sprenger, publicado em 1486, era como um manual para que inquisidores pudessem atuar. A obra contava como identificar bruxas, como fazer o processo, e mostrava formas de tortura efetivas para a confissão.
Por exemplo, para abrir um processo contra uma mulher, era preciso apenas a acusação de um particular ou denúncia sem provas. O testemunho de uma criança servia como prova para a adoração demoníaca, e o juiz podia decidir sozinho o veredicto. A tortura era permitida e normalizada, e se o acusado (ou acusada, a maior parte das mortes eram de mulheres solteiras e viúvas) não confessasse, era considerado que estava sendo ajudado pelo demônio. No manual, as formas de tortura menos horríveis eram queimar as solas dos pés ou inserir ferros sob as unhas. Assim, como mais alguém poderia aguentar a tortura se não fosse por um tipo de possessão? Ou seja, a Inquisição podia acusar, torturar e matar sem prova alguma. Apenas porque o juiz era uma forma de representação divina na Terra.
A Inquisição como um todo, sem contar apenas a parte medieval, durou de seu pequeno conselho de 1022 até o início do século 19, o que totaliza perto de oito séculos de perseguição religiosa.
Como tudo isso se transforma na tortura mais contemporânea, como vivemos no Brasil durante o período da Ditadura Militar? O poder verticalizado se tornou outro, e, muitas vezes, menos democrático do que se diz – a passagem do divino para figuras de autoridade, sejam jurídicas ou ditatoriais, implica que essas instituições possam ser consideradas sagradas, e, portanto, possam aplicar todo o tipo de punição.
Quem narra essa passagem é Michel Foucault no livro "Vigiar e Punir", de 1975. O autor comenta que o processo de produção do inquérito em tribunais antigos era de conhecimento só dos magistrados. Os acusados não tinham acesso às provas, evidências e testemunhos recolhidos pelos acusadores. Um sistema bem parecido com a Inquisição em muitos aspectos. Porque, dessa lógica, vem a possibilidade de confissão, como uma "verdade da informação" (FOUCAULT, 1999:36). E para obter a confissão, a aplicação de tortura era comum. A tortura só foi considerada errada para muitos tribunais no final do século 18. Até então, ela era misturada com provas reais.
Como esse tipo de punição era normal até muito recentemente, outro autor chamado Giorgio Agamben explana no livro "Estado de Exceção" que a partir do momento em que se cria um estado de exceção (que algum tipo de medo possa ser implantado na população, como, por exemplo, o fantasma do comunismo), tende-se a ficar mais aberto para que esse fantasma seja a fonte de todo mal. E, por consequência, que o Estado possa castigar quem desejar, por meio de execução ou tortura, como uma forma mentirosa de proteção do cidadão. No fundo, o que temos é uma cópia do sistema da Inquisição, em que as bruxas podem ser queimadas mesmo sem serem bruxas.
Para ele, o totalitarismo moderno "pode ser definido, nesse sentido, como a instauração, por meio do estado de exceção, de uma guerra civil legal que permite a eliminação física não só dos adversários políticos, mas também de categorias inteiras de cidadãos que, por qualquer razão, pareçam não integráveis ao sistema político". (AGAMBEN, 2007:13). Abre-se espaço para que o crime seja legalizado em prol de algo divino: um Estado protetor.
Assim, depois de se eleger um novo inimigo demoníaco, falar de censura, citar AI-5, tortura ou execução, pode ser palatável para uma população amedrontada pela sombra da possessão demoníaca. Agamben ainda afirma que esse tipo de pensamento "tornou-se uma das práticas essenciais dos Estados contemporâneos, inclusive dos chamados democráticos" (AGAMBEN, 2007:13). A Inquisição, os castigos de Zeus e o inferno de Dante continuam presentes não apenas no nosso imaginário, mas na maneira como permitimos que a verticalização do poder faça com que o Jurídico se torne o pior tipo de divino.
Para ler mais
ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia. Belo Horizonte, Ed. Itatiaia e S.Paulo, Ed.da. Universidade de S.Paulo, 1979
AGAMBEN, G. Estado de Exceção. São Paulo: Editora Boitempo, 2007.
DURAND, Gilbert. Estruturas antropológicas do imaginário : introdução a arquetipologia geral . São Paulo: Martin Fontes, 2002.
FOUCAULT, M. A Verdade e as Formas Jurídicas. Rio de Janeiro: NAU/PUC, 2005.
______. Vigiar e Punir. Petrópolis: Editora Vozes, 1999.
KRAMER, Heinrich & SPRENGER, James (2005). O martelo das feiticeiras: Malleus Maleficarum. Rio de Janeiro: Editora Rosa dos Ventos.
LIEBEL, Silvia (2004). A Demonização da mulher: a construção do discurso misógino no "Malleus Maleficarum". Curitiba: UFPR.
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