Por que Jane Foster é uma das personagens mais dignas do martelo de Thor
Nos quadrinhos, muitos personagens são dignos de empunhar o Martelo de Thor, ou Mjolnir, que confere poderes mágicos. Ao longo dos anos, até personagens improváveis como o Hulk conseguiram segurar o objeto – honra conferida apenas àqueles dignos do poder de Thor. Alguns, inclusive, são mulheres. Entre as personagens femininas que já se provaram dignas estão Tempestade, Garota Esquilo, Viúva Negra e até a Mulher-Maravilha, em um quadrinho que misturava DC e Marvel, o que não faz parte do "universo real" da Marvel.
Jane Foster é a mulher que passa mais tempo vestindo o manto de Thor, e sua história não apenas vendeu mais do que a contraparte masculina (considerando-se épocas parecidas), mas também rendeu indicação ao Eisner – o prêmio mais importante dos quadrinhos – de roteiro. Talvez esse seja um fato desconhecido aos fãs que habitam as salas de cinema, mas não tem o costume de ler quadrinhos.
Um breve histórico da personagem Jane Foster
A construção de Jane nas páginas de Thor é bem antiga. Ela teve sua primeira aparição como enfermeira em 1962 em "Journey in Mystery #84". A HQ tratava de uma guerra contra uma facção chamada The Communists (Os Comunistas) que raptava Jane. Ou seja, assim como muitas personagens femininas, sua origem é a tal donzela a ser salva. Durante sua trajetória, ela foi raptada mais algumas vezes, especialmente por Loki, que acreditava que a mulher seria um ponto fraco de Thor – sim, o romance com o herói é antigo. Com o passar dos anos, a personagem deixou a função de enfermeira e tornou-se médica.
Ela chegou até a empunhar o martelo em uma série chamada "What If" (E se), em 1978. Depois, Thor desiste do relacionamento. Foster, depois, se envolveu em pequenos casos em algumas HQs, apareceu durante os eventos da Guerra Civil, sempre com um papel bem mais voltado a ser um easter egg para os fãs mais leais. Algo que diz: olha, não esquecemos dessa personagem. Mas, depois de Guerra Civil, ela passa a ter mais espaço, quando sua história se torna mais trágica: ela se divorcia, perde a custódia de seu filho, e ambos acabam mortos em um acidente de carro. Em seguida, ela acaba diagnosticada com câncer de mama.
Esse foi o pontapé usado para a personagem a partir de 2014, quando começou a série de HQ "Original Sin", cujo enredo daria a Jane o poder de Thor. Nesta, Nick Fury comenta que Thor perdeu o poder de empunhar Mjolnir e uma mulher misteriosa aparece com o martelo em mãos. A série completa de Jane como Thor é bem bacana e recomendo a leitura – especialmente porque ela luta contra uma doença enquanto tenta colocar fim em uma batalha gigantesca entre os reinos.
Jane Foster como Thor e batalhando o câncerA vivência de ter o poder de Thor, para ela, é acompanhada de um preço, pois toda vez que ela se transforma, o martelo elimina todas as toxinas de seu corpo, incluindo o tratamento de quimioterapia que poderia salvá-la. Voltar a ter o poder de uma deusa é, também, aceitar sua própria mortalidade. Jane é uma heroína complexa por conta desta dualidade que a acompanha. A própria imagem do trovão é vista em muitas culturas dessa forma, como o casamento de água e fogo.
Thor e Oyá
Pensando no paralelo de opostos que se complementam, trago aqui outra deusa dos trovões, que também apresenta completude e complexidade: Oyá, deusa dos ventos, raios, tempestades e, também, de morte e renascimento. Em culturas africanas ou na América Latina, Oyá (conhecida como Iansã para certos cultos) é venerada até hoje.
De acordo com o estudioso Prandi, no livro "Mitologia dos Orixás", Oyá é poderosa e recebeu seus poderes pela sua ligação com orixás masculinos. Conta-se que "Iansã usava seus encantos e sedução para adquirir poder. Por isso entregou-se a vários homens, deles recebendo sempre algum presente. Com Ogum, casou-se e teve nove filhos, adquirindo o direito de usar a espada em sua defesa e dos demais. Com Oxaguiã, adquiriu o direito de usar o escudo, para proteger-se dos inimigos. Com Exu, adquiriu os direitos de usar o poder do fogo e da magia, para realizar os seus desejos e os de seus protegidos. Com Oxóssi, adquiriu o saber da caça (…)".
Como uma das poucas orixás femininas guerreiras, Oyá precisou aprender seu ofício com homens. Assim como Jane assume o manto de Thor não apenas por uma história ou um momento, mas por um arco completo, seu poder veio de um local conhecido primeiramente como masculino. Tanto Oyá quanto Jane sofrem críticas de seus pares por não serem o ideal de feminilidade graciosa, fofa ou recatada que se espera em alguns tipos de sociedade. Jane, inclusive, chega a ser chamada de extremista e vê a palavra "feminista" sendo usada com desdém mais de uma vez. As duas, porém, sabem navegar pelos mares que os homens acreditam ser deles e se tornam desafiadoras.
Por fazerem parte do imaginário da tempestade, existem outras similaridades interessantes, para além da questão guerreira. Como Gilbert Durand coloca em "Estruturas Antropológicas do Imaginário", existe um isomorfismo da animação do trovão com a rapidez do cavalo (no caso de Oyá, suas analogias com o búfalo cabem bem nesse mesmo esquema isomórfico). As duas (ou três) imagens trazem a questão da velocidade, e Durand lembra que existia um rei mítico chamado Tíndaro. Ele era um deus cavaleiro e seu nome foi dado também por conta do "vocábulo onomatopaico do trovão tundere". O som do trovão nos lembra desse rompante de rapidez.
Gaston Bachelard, em "O Ar e os Sonhos", compara ventos e tempestades ao prelúdio de um grito, de alguém que tem algo que precisa ser falado. Ele diz que "o vento de certo modo grita antes do animal, as matilhas do vento uivam antes dos cães, o trovão rosna antes do urso". Ele comenta que os ventos e trovões são os sinais de mudança, o que é extremamente apropriado tanto para Oyá quanto para Jane Foster. Suas presenças balançam o status quo.
O raio, para Durand, ainda ganha uma nova característica: ele funciona como uma flecha invertida que não ascende aos céus, mas descende como se fosse uma divindade que atinge a terra. Para o autor, ela pode servir como uma imagem de inspiração, tanto que línguas como o alemão antigo (strala), o russo (strela) e o alemão moderno (strahlen) evidenciam a proximidade das palavras "inspiração" e "raio". São inúmeras as divindades associadas aos raios e às tempestades e, geralmente, elas possuem um poder verdadeiramente transformador, que vem dos céus e é dado como dádiva na Terra.
Por fim, existe mais uma proximidade interessante entre Jane e Oyá, que é a relação das personagens com a morte. Jane sabe que está morrendo e, toda vez que coloca o manto de Thor, sacrifica um pouco sua saúde. Oyá tem sua ligação com o mundo dos mortos, como mostra Augras: "Embora as mulheres tenham sido expulsas do culto dos mortos, como observamos repetidas vezes, ela [Oyá] continua sendo invocada nas cerimônias funerárias". Ele também comenta que, quando a orixá dança, ela chama os espíritos a sua volta.
A facilitação da passagem para o mundo dos mortos não é algo que Jane vive quando veste o manto de Thor. Mas, depois de encerrar essa parte de sua história, sacrificando-se para terminar uma batalha entre os reinos e, posteriormente, sendo trazida de volta à vida, ela se transforma em uma Valquíria.
As Valquírias, na mitologia nórdica e germana, eram guerreiras associadas a Odin. Em Valhala, os guerreiros mortos mais valorosos podiam travar novas batalhas, festejar e participar de banquetes. As Valquírias tinham por um de seus propósitos varrer os campos de batalha atrás dos guerreiros mais valorosos e levá-los até Odin. Ou seja, encaminhando os mortos.
Assim, a relação entre trovão, tempestade e as divindades femininas não é necessariamente novidade. Bem como o uso de Mjolnir por outros personagens que não o Thor – nos quadrinhos por mais de uma mulher, e por Jane por um tempo considerável. As histórias de mulheres complementadas com esses poderes tendem a ser histórias complexas, de mulheres um tanto rebeldes que entendem o que é estar fora de seu elemento. Personagens mágicas que questionam e aprendem com seus poderes, mas que também fazem parte da complexidade que reside entre vida e morte. É isso que espero para Thor nos cinemas, ou, ao menos, alusões a esses papeis míticos.
Para ler mais:
AUGRAS, M. O duplo e a metamorfose: a identidade mítica em comunidades nagô. 2ed, Petrópolis: Rio de Janeiro, Vozes, 2008. Brasília: EdUnB.
BACHELARD. Gaston. (1997) O ar e os sonhos – ensaio sobre a imaginação do movimento. São Paulo: Martins Fontes, [1977]
DURAND, Gilbert. (2002) Estruturas antropológicas do imaginário: introdução a arquetipologia geral. São Paulo: Martin Fontes, 2002.
PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos Orixás. 11ª. reim. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
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