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Flávia Gasi

Star Wars: Está na hora de debater o caminho que Rey pode trilhar

Flávia Gasi

30/08/2019 07h09

Cena do trailer de "A Ascensão Skywalker" indica lado sombrio de Rey

Desde "Os Últimos Jedi", a saga Star Wars parece caminhar para questionar o maniqueísmo criado pelas forças Jedi e Sith dentro de sua mitologia. Até mesmo Luke Skywalker, o herói dourado da ordem, afirma: "Eu só conheço uma verdade. Chegou o momento de os Jedi acabarem". E esta é uma das coisas que realmente me deixam animada com a nova direção da franquia. Não que não seja bacana ver brigas épicas entre um lado inerentemente bom e um lado inerentemente mau – eu gosto, e imagino que você também – mas, como todas as outras coisas do mundo, o universo de Star Wars precisa parar de contar as mesmas histórias.

Essa divisão dualista de lado de luz e lado de sombras não é a única visão possível da Força dentro do mito da saga. Apesar de muitos livros, games e quadrinhos não serem mais considerados canônicos, há uma vasta biblioteca de obras sobre a Força Cinzenta. E essa é minha aposta para a personagem Rey, após a divulgação do trailer do filme. Muito do que será explicado neste texto está em obras consideras apenas "lendas" para os filmes, mas os produtores de Hollywood afirmam que elas podem, sim, servir como fonte de inspiração para a criação do material cinematográfico.

Os Cinzentos em Star Wars

O conceito dos Cinzentos e dos Jedi Cinzentos foi costurado por muitos autores diferentes e é por isso que ele pode ficar um pouco inconsistente em cada obra. No geral, criaturas que podem usar a Força e não se comprometem nem aos Jedi nem aos Sith são chamadas de Cinzentos. Há os puros, que acabam ajudando a Ordem Jedi, os Sith ou que se misturam com as duas facções.

Antes de existirem Jedi ou Sith, havia uma ordem chamada Je'daii (como visto em "Dawn of the Jedi"), uma organização cujos propósitos principais eram estudar e manter o equilíbrio da Força em um planeta chamado Tython. O próprio planeta tinha duas luas: Ashla (de luz) e Bogan (de sombras). Para manter Bendu (equilíbrio), era necessário que usuários da Força mais sombrios meditassem em Ashla, e os de luz, em Bogan. Foi um racha entre os Je'daii que acabou criando os Jedi e os Sith. Ou seja, podemos dizer que um conceito triádico (luz, sombra e equilíbrio) foi a primeira forma de visão da Força e que, antes das facções, havia apenas os cinzentos.

Há poucos personagens que realmente passeiam pela Força Cinzenta, sem serem considerados mais para o lado Jedi ou mais para o lado Sith. Um deles é Revan, ex-Jedi e ex-Sith que aparece em diversos livros, é citado nas séries de animação e apareceu pela primeira vez como protagonista no videogame "Star Wars: Knights of the Old Republic" da empresa Bioware (um game maravilhoso que recomendo). Revan passou muito tempo como um vilão, depois virou herói, e, por fim, descobriu uma nova maneira de lidar com a Força: "Não há luz, não há sombra. Há apenas a Força, tão cinzenta como deveria ser". É uma visão diferente dos Je'daii, mas que ajuda a aumentar o escopo do que pode ser considerado cinza. Outro game da Bioware, o RPG Online "The Old Republic", apresentou uma raça de alienígenas sensíveis à Força que podiam ver o futuro, mas se recusaram a entrar em alguma das fações.

Também há grupos e facções que se alinharam aos Sith ou ao Império. E, para completar nossa breve explicação, há os Jedi Cinzentos. Geralmente são os que se alinham com a filosofia Jedi, mas não concordam totalmente com as ações ou ordens do Conselho Jedi. Muitos membros do conselho considerariam Qui-Gon Jinn, de "Star Wars Episódio 1: A Ameaça Fantasma" como Cinzento (ele não apenas discorda da Ordem, como age por conta própria, mas nunca usando técnicas associadas aos Sith). Da mesma forma, Ahsoka Tano, aprendiz de Anakin em "Clone Wars" também entraria nesse escopo.

Uma visão dualista do mundo

 

Rey e Kyle duelam em trailer de "A Ascensão Skywalker"

Se partimos do ponto de vista filosófico, os Jedi Cinzentos não seriam considerados como verdadeiros Cinzentos, pois ainda acreditam que há um modo bom de usar a Força e um modo ruim, diametralmente oposto. O dualismo é um conceito que define o mundo como baseado em dois princípios opostos que não podem ser subordinados. Mesmo que se acredite que o bem só existe porque há o mal, o mal nunca será bem, e o bem nunca será mal. Essa noção é bem comum na filosofia e no universo de Star Wars. Jedis que caem viram Sith, mas, para tal, é preciso haver uma queda moral. Também há a possibilidade de redenção, mas isso significa sair do espectro Sith e ascender para os Jedi. Ou seja, sempre há verticalismo. Há algo acima e algo abaixo. Assim, a noção de que um herói pode destruir um monstro (e isso é uma coisa boa) cabe dentro dessa visão dualista do mundo, em que heróis são realmente heroicos e vilões são verdadeiramente monstruosos.

Como uma cultura eurocêntrica, nosso conceito de dualismo foi calcado por dois grandes pensadores. Em primeiro lugar, temos Platão, que defendia que o racionalismo e as ideias são inatas aos seres humanos. Elas nos são herdadas de um mundo inteligível que existe antes da humanidade. O filósofo explica isso no conhecido e amplamente usado Mito da Caverna. Em "A República", Platão conta que havia um grupo de pessoas acorrentadas no fundo de uma caverna e elas podiam apenas enxergar as sombras das coisas reais. Quando uma delas se libertou e visitou o mundo, se assustou com as cores e a luz e retornou para a caverna querendo compartilhar o que tinha visto. Seus companheiros a julgaram maluca e a mataram.

Ou seja, o texto fala sobre a necessidade de se buscar a verdade, mesmo que isso seja considerado problemático para a sociedade. Porém, o que isso também significa é que há uma verdade a ser buscada. Não várias. Não interpretações. Existe a possibilidade de se conhecer a verdade. E se a verdade perfeita existe, então a mentira perfeita também. Jedi. Sith.

Na mesma vertente, temos Descartes, que foi o primeiro filósofo a separar a consciência (o cérebro, a razão) do espírito (substância imaterial). Como se fossem, novamente, duas instâncias opostas. Assim, podemos ainda olhar para uma percepção maniqueísta do mundo que também funciona para Star Wars: a matéria é intrinsecamente má, e o espírito, intrinsecamente bom. Tudo que tem a ver com o corpo e a paixão é Sith. Tudo que tem a ver com a mente e a iluminação divina é Jedi.

A caverna, inclusive, é usada em alegorias Jedi versus Sith em Star Wars. Quando estava em treinamento com o Mestre Yoda, Luke entra em uma caverna para ser confrontado pelo lado sombrio da Força. Já na nova trilogia, na primeira vez em que Rey se conecta com a Força, ela visualiza a imagem da caverna. De acordo com Luke, Rey se deixa levar pela caverna (por conta de existir algo lá dentro que ela deseja muito). Aparentemente a caverna tem um símbolo de sombra que deve ser afastado. Rey faz o oposto e é engolida pela caverna. Eu falo melhor sobre isso nesse vídeo:

E como os Cinzentos podem mudar isso?

A Grécia tinha muitos filósofos proeminentes que discordavam de Platão. Aristóteles, por exemplo, tinha uma percepção bem diferente do inatismo e dizia as ideias vêm da observação do mundo, que é ao mesmo tempo sensível e inteligível. Esse entendimento mais empírico do mundo vai influenciar diversas correntes de pensamento, como a Fenomenologia, que se dedica a estudar os fenômenos que ocorrem no mundo como eles são e como são percebidos.

Um dos meus pensadores favoritos dessa corrente é Martin Heidegger, que cunhou um conceito chamado ser-no-mundo. Como costumo fazer, trago no texto uma explicação simplista da filosofia (afinal, há algumas teses de doutorado sobre cada uma das noções que trago aqui): o ser no mundo é triádico, pois se debruça a entender o que é o "ser", o que é o "mundo" e como isso existe no tempo, o "em". Para ele, "o ser não somente não pode ser definido, como também nunca se deixa determinar em seu sentido por outra coisa nem como outra coisa. O ser só pode ser determinado a partir do seu sentido como ele mesmo". Claro, essa frase é bem complexa, mas vamos nos atentar a uma base importante: nesse caso, o ser não está fadado a estar em um dos dois modos de se viver, bom ou ruim. O ser sempre existe em um mundo e em um tempo. Seguindo um pensamento mais aristotélico, o ser é um ser de potência multíplice (e não apenas duas).

Um sistema de pensamentos triádicos sempre traz essa complexidade que não existe em um sistema dual. Se existe algo além de Sith e de Jedi, então os portadores da Força podem decidir trilhar caminhos diferentes, pois o dualismo é sempre uma forma de prisão. Os Cinzentos trazem essa possibilidade de criar uma tríade de possibilidades, que abre caminho para algo muito maior.

Por outro lado, um herói Cinzento nunca será um herói heroico como foi Luke Skywalker na trilogia original. Há aqueles que veem isso como um problema, um erro cometido pela saga. Eu vejo como uma evolução natural de pensamento, que dá a potência de criação de histórias mais complexas, além de movimentar a série para além de um conceito que a permeou por tempo demais.

Fontes do universo expandido de Star Wars para você conhecer:

Games
Knights of the Old Republic
Star Wars: Knights of the Old Republic II: The Sith Lords
The Old Republic

Livros / HQs
The Old Republic: Revan
Dawn of the Jedi
I, Jedi

Bibliografia base:
ARISTÓTELES. Metafísica. Tradução, comentário de Giovanni Reale. 2ª edição. São Paulo: Editora: Loyola, 2005.
HEIDEGGER, M. (1995) Ser e Tempo (parte I). Petrópolis: Vozes.
MARCONDES, D. Iniciação à história da filosofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein. 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
PLATÃO. A República. Tradução e notas de Maria Helena da Rocha Pereira. 13ª Edição. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2012

Sobre o Autor

Flávia Gasi é doutora e mestre pela PUC-SP no programa de Comunicação e Semiótica. Sua dissertação de mestrado foi ampliada para se tornar o livro Videogames e Mitologia. Atualmente é CEO da Forja, sócia do blog Garotas Geeks, e criadora da escola Verve. Com mais de quinze anos de experiência em jornalismo e comunicação no mercado gamer e de cultura pop, fundou um grupo de estudos chamado JOI – Jogos e Imaginário, e dá aulas de narrativa para games.