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Flávia Gasi

Proibido na China, jogo Plague Inc. ajuda a pensar na cura da covid-19

Flávia Gasi

20/03/2020 04h00

Existe uma teoria que diz que videogames podem ajudar a criar soluções práticas para os problemas do mundo. Claro, isso não se aplica necessariamente a todos os tipos de videogame. Antes de entramos nesse tópico, há alguns pontos que eu gostaria de esclarecer: a premissa de que jogos causam violência não é necessariamente comprovada. Há, por outro lado, muitas pesquisas que comprovam os benefícios de se jogar. Falo mais sobre o assunto neste vídeo:

Para aprofundar esta vertente, a designer de games Jane McGonigal publicou um livro chamado "A Realidade em Jogo: porque os games nos tornam melhores e como eles podem mudar o mundo". Na obra, ela explana o resultado de sua pesquisa como criadora de jogos. Para ela, todo gamer entende de resolução de problemas, porque no mundo dos jogos "Não existe a frase 'eu não consigo'", coloca. McGonigal coloca que a aventura de qualquer jogo é composta de 99% de erros, apenas 1% de acertos, o que faz com que jogadores tenham o perfil ideal para descobrir novas possibilidades a cada novo cenário.

Veja mais:

"Sempre existe algo importante e específico para ser feito. O jogador sempre está prestes a salvar o mundo", explica Jane McGonigal. Pelo tipo de envolvimento, que é prazeroso, o jogador vive momentos que aliam concentração, raciocínio rápido, entre outras habilidades cognitivas. E a cada instante, o jogo recompensa seu jogador, seja com um ponto a mais na sua árvore de habilidades, seja completando uma fase.

Caso tenha interesse, você pode ver um pedaço da palestra da pesquisadora aqui:

 

 

Assim, a questão de McGonigal é: se focarmos em criar games cooperativos em que muitos jogadores tentam achar a solução de um problema, talvez possamos descobrir respostas viáveis. Parece interessante, não?

Game foca em achar solução para a covid-19

Imagem do game Foldit, desenvolvido pela Universidade de Washington

O game Foldit foi criado pela Universidade de Washington, nos Estados Unidos, e ganhou uma atualização que, diz a universidade, pode ajudar no combate ao novo coronavírus. O vírus se prende a células humanas através de proteínas. Fodit já tratava de saúde, mas o novo quebra-cabeças se foca em criar uma proteína antiviral, capaz de se conectar à proteína do vírus e, assim, impedir que ele se prenda às células humanas. Isso faria com que o agente infeccioso pare de se reproduzir. O cientista, Brian Koepnick, afirma, em um vídeo, que o game age exatamente como as pesquisas: "Testamos mais de uma vez para comprovar eficácia".

Foldit já conta com mais de 200 mil jogadores. Se você tiver interesse, pode buscar mais informações no game, no quebra-cabeças específico 1805b dentro de Foldit, e no vídeo abaixo:

Games que podem conscientizar

(Jogo Plague Inc. foi banido na China)

O game revela a vida, pois nasce em uma cultura e não existe fora dela. Assim, certos games podem ajudar a conscientizar da necessidade de isolamento social, por exemplo. Claro, também pode ajudar a reafirmar uma visão mais histérica da sociedade. Mas não porque o game é bom ou mau, e sim porque ele é visto por diferentes subjetividades. Se partimos do princípio de McGonigal, muitos games podem ser utilizados para educação ou conscientização.

No momento, um jogo bem comentado nas mídias (e por alguns governos) é Plague Inc. Trata-se se um videogame de simulação e de estratégia em tempo real. O jogador pode atuar como 10 tipos de patógenos diferentes, cujo objetivo é aniquilar a raça humana. A empresa desenvolvedora, Ndemic Creations, do Reino Unido, informa que Plague Inc. reconhecido pelas autoridades de saúde por usar dados do mundo real, e, assim, ter certa veracidade em como as doenças se espalham.

Cuidado, o objetivo aqui não é ser um game educacional ou científico, como é o caso de Foldit. A Ndemic Creations chegou a fazer pronunciamento a respeito disso depois de seu game ser banido na China por "conteúdo ilegal". A empresa diz que Plague Inc. não é "educativo ou informativo". Ou seja, ele é apenas um jogo. Contudo, aliado ao esforço humano de um profissional de educação, jogos como o Plague Inc. podem ser utilizados como forma de conscientização societária. Afinal, seu modelo de infecção surgiu de simulações com dados do mundo real.

O potencial do uso do game com foco educacional é um conceito que se solidificou bem antes de McGonigal. Segundo Greenfield, ao acrescentar o processo de imersão, o game pode, "ao contrário da leitura, do rádio ou da televisão, a tecnologia interativa para computadores pode propiciar à criança o papel ativo tão essencial ao processo de aprendizagem" (GREENFILED, 1988:114)

(O mundo de Plague Inc. já um tanto infectado)

A função do jogo na sociedade, para Huizinga (1938), é o de completar o conhecimento do indivíduo, em um ambiente livre de pressões, adequado para a investigação, exploração e resolução de problemas. A investigação e a exploração são conceitos aplicados na estética da simulação do labirinto, uma lógica presente em ambientes de entretenimento e aprendizagem.

Tendo isso em mente no momento do desenvolvimento, os games tornam-se espaços de aprendizagem para práticas colaborativas, através de simulações marcadas por formas de pensamento não-lineares que envolvem negociações, abrem caminhos para diferentes estilos cognitivos e emocionais (noções apresentadas por Turkle, em 1997).

Gee (2004), em seu livro "O que os games têm a nos ensinar sobre aprendizado e literacia", afirma que os jogos permitem aos jogadores: a) aprender a experimentar (ver e atuar sobre) o mundo de uma forma nova; b) obter potencial para unir-se e colaborar com um novo grupo de afinidades; c) desenvolver recursos para uma aprendizagem futura e para a resolução de problemas nos âmbitos semióticos que estão relacionados com o jogo; d) aprender a pensar sobre os âmbitos semióticos como espaços  de  desenho que implicam e 'manipulam' gente de determinadas maneiras, e os ajudam a criar, por sua vez, certas relações na sociedade entre indivíduos e os grupos de pessoas, alguns dos quais têm importantes implicações para a justiça social.

O processo imersivo, a meu ver, sempre deve ser levado de volta para a sala de aula, ou para o educador. Assim, sejam games criados com o propósito de pesquisa, ou com o propósito de entretenimento, os jogos podem ser uma ferramenta importante para conscientizar, e até ajudar na cura, dos problemas contemporâneos.

Para ler mais

GEE, James Paul. "Learning and Games." The Ecology of Games: Connecting Youth, Games, and Learning. Edited by Katie Salen. The John D. and Catherine T. MacArthur Foundation Series on Digital Media and Learning. Cambridge, MA: The MIT Press, 2008. 21–40.

GREENFIELD, Patrícia Marks. O Desenvolvimento do raciocínio na era da eletrônica: os efeitos daTV, dos computadores e videogames. São Paulo: Summus, 1988.

HUIZINGA, Johan. Homo Ludens: o jogo como elemento cultural. São Paulo: Perspectiva,1990.  [1938]

MCGONIGAL J. A realidade em jogo: porque os games nos tornam melhores e como eles podem mudar o mundo. Rio de Janeiro: Bestseller, 2012.

TURKLE, Sherry. A vida no ecrã – a identidade na era da Internet. Lisboa: Relógio D'água, 1997

Sobre o Autor

Flávia Gasi é doutora e mestre pela PUC-SP no programa de Comunicação e Semiótica. Sua dissertação de mestrado foi ampliada para se tornar o livro Videogames e Mitologia. Atualmente é CEO da Forja, sócia do blog Garotas Geeks, e criadora da escola Verve. Com mais de quinze anos de experiência em jornalismo e comunicação no mercado gamer e de cultura pop, fundou um grupo de estudos chamado JOI – Jogos e Imaginário, e dá aulas de narrativa para games.