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Flávia Gasi

Catástrofe ambiental destruiu Atlântida. Mito vai virar realidade?

Flávia Gasi

25/08/2019 07h20

Parece-me o momento correto para falar do Mito de Atlântida. Claro que há o contexto de que Atlântida seria um reino perdido para uma catástrofe ambiental – e que essa foi a primeira conexão mental que fiz, e imagino que você também. Contudo, para além disso, há interpretações bem interessantes do mito que nos levam a pensar o conceito e as questões de poder. Nesse texto, pretendo comentar a primeira noção e me focar na segunda.

Atlântida é uma narrativa comentada pelo filósofo Platão que teve mais de um efeito na nossa cultura, de gente que se foca em tentar encontrar a geografia de tal local, até a contribuição para nossa visão de utopia e, mais especificamente, uma cidade utópica, nas quais as relações eram equilibradas perfeitamente. Platão dizia que a origem do conto era egípcia, mas não há registros escritos disso – há de se lembrar que a tradição oral era importante na época.

Atlântida, como vista no game Assassin's Creed Odyssey

O conto por Platão

De qualquer forma, a história se passaria 9.000 anos antes de Atenas, em tempos em que o mar podia ser atravessado, e começa com o deus Poseidon, dos mares e oceanos, irmão de Hades e Zeus. O deus teria tido uma geração de filhos com uma humana, o que era bem como na mitologia grega, e depositou sua prole na ilha de Atlântida. A primeira geração de Atlantes carregava, assim, uma chama de divindade, o que lhes tornava incorruptíveis. Aos poucos, contudo, as gerações se tornaram mais humanas, mais falhas, e mais aptas a criar sua própria destruição. Antes disso, contudo, os Atlantes possuíam riquezas sem fim, retiradas da natureza sem muito pensar e ostentadas em paredes, adornos, edifícios. Mulheres e homens tinham as mesmas ocupações, como guerreiros, sacerdotes, agricultores ou artesãos.

O abuso de recursos naturais se tornou normal quando as relações entre os Atlantes também se tornaram gananciosas. Em vez de resolverem seus conflitos com ajuda mútua, eles passaram a venerar a si como maiores ou mais divinos que a natureza que os fornecia abrigo. Platão afirmava que isso era consequência da perda de sua divindade. É importante relembrar que o filósofo acreditava que as coisas tinham uma essência que nunca seria vista por olhos humanos, falhos. O tal Mito da Caverna – e cito aqui de forma rápida – parte do princípio de que existe uma verdade única, algo que essa escritora não consegue acreditar. A questão de humanidade e divindade é algo que quero comentar um pouco mais à frente.

Os Ents retratados em O Senhor dos Anéis

Abuso de poder e dos recursos naturais

Contudo, há uma passagem no livro "Crítias", de Platão, que trata de Atlântida, que acho bem interessante:

(…) davam a impressão de ser extremamente belos e felizes, mas estavam impregnados de uma arrogância injuriosa e de poder. (PLATÃO, Crítias, 121, a-b)

Foi esse abuso de poder que causou a natureza a se enfurecer e, por conta de abalos sísmicos e dilúvios, Atlântida foi perdida para sempre. Claro que o conto tem aquele tom de demonstrar que o humano é menor do que a força da natureza, no sentido de que ele será dizimado antes de acabar com os recursos do planeta. Mesmo a pessoa menos conhecedora do mito já deve ter visto essa história repercutir em diversas obras da cultura pop – e até fora dela com os contos de dilúvios, por exemplo.

Há um tropo conhecido como a "Vingança de Gaia", que mostra a revolta da natureza contra os humanos e é extensivamente usado. Seja com um tipo de praga que mata todos os humanos, como visto no filme "12 Macacos"; seja com um tipo de defesa natural, como no game "Final Fantasy VII", onde um exército de criaturas colossais chamadas WEAPONs desperta para proteger o planeta; seja com uma natureza mais consciente, como é o caso dos Ents (árvores sentientes) que destroem os exércitos de Saruman em "Senhor dos Anéis", quando o mago ameaça destruir sua floresta. Também há os casos em que a natureza reclama a Terra, como na animação "Castelo no Céu".

O abuso de recursos naturais é amplamente retratado na nossa cultura e geralmente a consequência é a aniquilação da raça humana (ou quase aniquilação).  Assim como em Atlântida, essas obras e mitos narram um desequilíbrio: a humanidade que não consegue conviver consigo. Destaco dois pontos: o primeiro tem a ver com a impossibilidade da humanidade de se perceber como parte integrante da natureza, e não maior do que ela. O segundo ocorre em decorrência do primeiro: o uso de poder e violência para exploração de recursos, como se eles fossem infinitos, e sempre servissem à humanidade e ao seu progresso.

Ilustração baseada na obra Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley

Utopia, poder e religião

Atlântida é um dos mitos mais conhecidos que trata disso.  E nos deu ecos para a criação do conceito de utopia. Etimologicamente, o termo surge das palavras gregas "ou" (prefixo de negação) e "topos" (lugar), ou seja, fala de um não lugar, ou de lugar nenhum. Contos como "New Atlantis" de Francis Bacon tratam de uma busca por uma sociedade perfeita. No entanto, a maior parte das utopias é apenas um pedaço do conto que leva a uma sociedade distópica (anti-utópica), como em "Admirável Mundo Novo", de Aldous Huxley. Na busca da perfeição, criamos a sociedade mais opressora possível, pois a perfeição não é possível.

O que isso tem a ver com a religião ou o divino? O pesquisador Andityas Matos coloca em seu texto "Utopias, distopias e o jogo da criação de mundos":

Atenas e Atlântida são reversas, Atenas representa a terra virtuosa, e Atlântida, a cidade injusta nascida do capricho de um deus confuso, Poseidon. Embora ambas ainda estejam muito arraigadas às questões religiosas, Atenas (Critias) parece soltar-se mais dos antigos dogmas, e conquista a ideia crucial da utopia: assumir seu próprio destino. Enquanto a Atlântida ainda está rodeada por estátuas e um templo sagrado, Atenas dispõe-se de todo vigor do pensamento construtivo, apartando-se das crenças ao colocar o homem como solucionador de seus problemas.

Ou seja, a crença no divino como solucionador de todos os problemas da humanidade tira o humano da condição de seu próprio salvador, ou, até mesmo, de protagonista da resolução dos seus problemas. A utopia existe em nosso imaginário para ser refletida, e não alcançada. Porque, invariavelmente, quando se tenta criar a perfeição, inicia-se um processo de abuso de recursos e de poder que nos leva bem mais próximos a uma distopia.

Muitos autores, entre eles Barbara Freitag e Antonio Carlos Cabral Carpintero, fazem essa comparação com a cidade de Brasília. Nos seus textos, que você encontra abaixo, eles comparam a criação da capital federal a um ideal utópico que se transforma em uma cidade que isola o povo de seus governantes por conta do golpe militar de 1964. Da mesma forma, vemos hoje a ascensão de um político considerado por seus apoiadores um "mito" (no sentido mais vazio da palavra), a fim de buscar soluções rápidas e utópicas e sua consequente apropriação do poder para abuso não apenas de recursos naturais, mas de sua posição de destaque. Da utopia para a distopia.

Deleuze foi um grande pensador sobre as relações de poder. Em seu texto sobre o poder do afeto – nos permitir ser afetados pelo mundo – ele destaca uma fala de Espinosa: "O  grande  segredo  do  regime  monárquico e seu profundo interesse consistem em enganar os homens, dissimulando, sob o nome de religião, o temor ao qual se quer acorrentá-los; de forma que eles combatem por sua servidão como se fosse sua salvação" (no livro de Deleuze: "Espinosa: Filosofia Prática"). Se tomarmos o mito de Atlântida, partimos do princípio que a ascensão e a queda do povo Atlante vieram de acreditar que eram divinos e que sua ligação não era com a humanidade ou o mundo material, mas com os deuses.

O poder, para Deleuze, não é ruim ou bom, mas pode atuar de maneira mais ou menos opressora, dependendo de como decidimos usá-lo. Uma coisa é a potência de criar, de se conectar, de estar afetado e afetar, o poder de vivenciar relações múltiplas. Outra é o poder como força transcendente, vertical, de cima para baixo, que promove dominação e exploração. As maiores formas de exploração são encontradas no texto de Platão: subjugar o outro via força (os Atlantes dominaram outros territórios) e subjugar o mundo material como se fossem desconectados a ele – em outras palavras: a tirania.

Leia mais:

CARPINTERO, Antonio Carlos Cabral. Brasília: prática e teoria urbanística no Brasil, 1956-1998". Tese de doutoramento apresentada da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. 1998.

DELEUZE,  Gilles.  Nietzsche e a filosofia  [1962].  Rio  de  Janeiro:  Rio  –  Sociedade Cultural, 1976.

______. Nietzsche [1965]. Lisboa: Edições 70, 2007.

______. Espinosa: Filosofia Prática [1981]. São Paulo: Escuta, 2002.

______. El poder:  curso  sobre Foucault  (Tomo  2)  [1986].  Buenos Aires: Cactus, 2014.

FREITAG, Barbara. Utopias urbanas: https://teoriadoespacourbano.files.wordpress.com/2013/01/freitag-bc3a1rbara-utopias-urbanas.pdf

MATOS, Andityas Soares De Moura Costa. Utopias, distopias e o jogo da criação de mundos: https://www.ufmg.br/revistaufmg/downloads/24/03_Andityas_UtopiaDistopia_pags_40a59_Revista_UFMG_24.pdf

PLATÃO. Timeu. In: PLATÃO. Timeu-Crítias. Tradução do Grego, Introdução e Notas de Rodolfo Lopes. (Coleção Autores Gregos e Latinos). Coimbra: Cech, 2011. p. 69-211.

______. Crítias. In: PLATÃO. Timeu-Crítias. Tradução do Grego, Introdução e Notas de Rodolfo Lopes. (Coleção Autores Gregos e Latinos). Coimbra: Cech, 2011. p. 212-246.

Sobre o Autor

Flávia Gasi é doutora e mestre pela PUC-SP no programa de Comunicação e Semiótica. Sua dissertação de mestrado foi ampliada para se tornar o livro Videogames e Mitologia. Atualmente é CEO da Forja, sócia do blog Garotas Geeks, e criadora da escola Verve. Com mais de quinze anos de experiência em jornalismo e comunicação no mercado gamer e de cultura pop, fundou um grupo de estudos chamado JOI – Jogos e Imaginário, e dá aulas de narrativa para games.